São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007

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+ Marcelo Leite

Gêmeas malhadas



Cópias gênicas podem se diferenciar com passar dos anos A parências, definitivamente, enganam. O título desta coluna, por exemplo, poderia sugerir conteúdo característico de uma dessas descartáveis revistas masculinas. Tanto melhor: os precipitados lerão algo instrutivo, afinal, sobre as diferenças entre machos e fêmeas.
Tanto homens quanto mulheres podem vir ao mundo aos pares, e existem dois tipos de pares: gêmeos fraternos (cada irmão originado de um óvulo fertilizado por um espermatozóide) e gêmeos ditos idênticos. Os fraternos costumam ser muito diferentes entre si, até mesmo de sexos opostos.
No segundo caso, ambos os irmãos são gerados de um mesmo óvulo, fecundado por um único espermatozóide. O zigoto se parte depois, dando origem a dois fetos "monozigóticos", tidos como "idênticos" por serem clones um do outro -eles têm o mesmo conjunto de genes. A noção corrente de engenharia genética supõe que o conteúdo dos genes seja a chave de tudo. Eles não passam de um arcabouço -o genótipo- ao qual se agregam camadas sucessivas e complexas de detalhes -o fenótipo, fruto de um processo de desenvolvimento para lá de barroco. Considere o caso dos gêmeos monozigóticos. Seus genes são em princípios idênticos, mas não eles próprios. Nem mesmo no nível molecular, comprovou um estudo espanhol de 11 de julho de 2005.
O artigo no periódico "PNAS" pode parecer velho, em tempos de ciência frenética, mas não é. O que chamou a atenção sobre ele foi uma nota na revista "The Scientist" informando que já recebeu uma centena de citações por terceiros, qualificando-se como "hot paper" (artigo quente). O grupo de Mario Fraga e Manel Esteller, do Centro Nacional Espanhol de Câncer (Madri), investigou 30 pares masculinos e 50 femininos de gêmeos monozigóticos, de 3 a 74 anos. Descobriu que os gêmeos de cada par eram tanto mais diferentes entre si quanto mais idosos fossem.
Fraga e Esteller não se fixaram no DNA, mas nem por isso abandonaram o plano das moléculas. Dirigiram seu foco não para a genética, mas para a epigenética. Ou seja, para a série de transformações químicas que os cromossomos sofrem ao longo do desenvolvimento biológico e da vida. Pense nessas modificações como um sistema de marcas, similar às orelhas, sublinhados e papeizinhos que acrescentamos aos livros de estudo. Elas servem para indicar às células de certas partes do corpo quais são os genes de interesse para aquele tecido em particular. Um sistema mnemônico, se quiser.
Faz todo sentido, assim, que as marcas sejam mais díspares em pares de gêmeos idosos do que nos infantis. A epigenética constitui também uma espécie de memória orgânica da biografia do indivíduo, ou o que os biomédicos chamam de "estilo de vida" (sua alimentação, por exemplo). Há outro complicador, contudo, como anotou Andrew Papp, leitor da "Scientist": gêmeas monozigóticas podem ser geneticamente "malhadas" (ter fenótipos discordantes, diria um geneticista). Como têm dois cromossomos X, o organismo define aleatoriamente qual dos dois livros da biblioteca vai "ler".
Uma gêmea pode desenvolver proteínas, características e até órgãos inteiros especificados por informação no X herdado da mãe; a outra, no X do pai. Se uma tiver tal doença, mas sua irmã "idêntica" não padecer dela, será difícil descobrir se a discrepância resulta de diferenças no estilo de vida (como sugere o estudo espanhol) ou dessa loteria intra-uterina. Aparências, definitivamente, enganam -até a de gêmeas malhadas.

MARCELO LEITE é autor do livro "Promessas do Genoma" (Editora Unesp, 2007) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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