São Paulo, domingo, 17 de março de 2002

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+ ciência

Livro ressuscita polêmica entre o cientista americano Robert Gallo e o francês Luc Montagnier sobre a descoberta do vírus que causa a Aids

O retorno da batalha viral

John Horgan
do "The New York Times"

Doze anos atrás, Robert Gallo era o chefe do laboratório de biologia celular tumoral do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos e um dos cientistas mais celebrados do mundo. Em 1984, Margaret Heckler, secretária de Saúde e Serviço Social, havia aclamado Gallo como o descobridor do vírus da Aids e o inventor do primeiro teste para identificar sua presença. Gallo tinha recebido virtualmente todos os grandes prêmios da pesquisa médica, exceto o Nobel de Medicina ou Fisiologia.
Então, em 19 de novembro de 1989, o jornal "The Chicago Tribune" publicou uma reportagem que acusava Gallo de levar o crédito pelas descobertas ligadas à Aids do Instituto Pasteur de Paris. Dando forma a rumores que haviam circulado por anos, a denúncia do jornal provocou várias investigações federais. O autor da reportagem, John Crewdson, deve ter ficado irritado, já que todos os inquéritos terminaram de forma inconclusiva. Embora a reputação de Gallo tivesse saído arranhada, nenhuma das acusações contra ele foi provada.
Em "Science Fictions", Crewdson volta de forma vingativa ao caso em mais de 600 páginas excruciantemente detalhadas. Bem antes que a Aids tornasse Gallo famoso, mostra Crewdson, ele havia atraído atenção não apenas por seu trabalho com os vírus ligados ao câncer, mas também por sua ambição e arrogância. Quando uma misteriosa doença se transformou em epidemia entre gays no começo dos anos 80, Gallo rapidamente intuiu que um vírus era a causa e dedicou os recursos de seu laboratório a encontrá-lo.
Em 1983, Gallo declarou que um vírus ligado ao câncer chamado HTLV, descoberto em seu laboratório em 1980, era a causa mais provável da Aids. Ao mesmo tempo, um grupo liderado por Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, afirmou ter encontrado um vírus diferente, chamado LAV, em vítimas da Aids. Gallo pediu amostras do LAV a Montagnier, e as recebeu. Crewdson mostra evidências de que, em questão de meses, um dos companheiros de Gallo, Mikulas Popovic, cultivou o LAV em células do sangue e descobriu que ele era muito mais comum em vítimas da Aids do que o HTLV.
Mesmo assim, Gallo desdenhou publicamente o estudo da equipe francesa, insistindo que as amostras virais de Montagnier não eram capazes de crescer em cultura e, portanto, eram virtualmente inúteis para pesquisa. Ainda em 1984, Gallo continuava afirmando que o HTLV ou uma variante dele era "o único candidato" a causador da Aids. Alguns meses depois, ele anunciou ter descoberto uma variante do HTLV, chamada HTLV-3B, em pacientes com Aids. Outros pesquisadores notaram que ele pouco tinha a ver com o HTLV; de fato, o HTLV-3B mostrou-se impressionantemente similar ao LAV.
Havia várias interpretações possíveis para essa situação. A mais simples era que Gallo havia descoberto independentemente o mesmo vírus que os franceses. Em meados dos anos 80, contudo, os pesquisadores estabeleceram que o vírus da Aids sofre mutação de forma tão rápida que espécimes extraídos de pacientes diferentes vão sempre divergir geneticamente. Alguns pesquisadores dizem que os vírus descritos por Gallo e Montagnier eram tão similares que poderiam ter vindo do mesmo paciente ou do mesmo frasco de laboratório.
A princípio, Gallo negou que seu vírus e o francês fossem o mesmo. Quando a situação se tornou insustentável, sugeriu que o laboratório francês havia roubado seu vírus, e não o contrário. Afinal de contas, ele havia mandado amostras de seu vírus para os franceses em 1984. Mas o grupo de Montagnier havia descrito o LAV um ano antes de receberem amostras do HTLV-3B. Além disso, Popovic, que supostamente o havia isolado, costumava ser vago sobre suas origens. Enquanto isso, tanto o Instituto Pasteur quanto a equipe de Gallo tentaram conseguir a patente de um teste para detectar o vírus. Depois que o Escritório de Patentes e Marcas deu a patente ao grupo de Gallo em maio de 1985, o Instituto Pasteur o processou, afirmando ter descoberto o vírus usado no teste de Gallo. Quando os franceses mostraram registros que os apoiavam, Gallo retorquiu que eles se importavam mais com "patentes e notoriedade" do que com boa ciência.
A disputa alcançou o então presidente Ronald Reagan e o primeiro-ministro francês Jacques Chirac, que declararam uma trégua em março de 1987, ao concordar que franceses e norte-americanos dividissem a patente. A gritaria de Gallo convencera funcionários do governo e jornalistas proeminentes de que, pelo menos, ele merecia crédito por ter descoberto o vírus independentemente e desenvolvido um teste para detectá-lo.
Em 1989, no entanto, os Institutos Nacionais de Saúde começaram a levar a sério a afirmação de Crewdson de que a "descoberta" de Gallo era "um acidente ou um roubo". Durante os três anos seguintes, diferentes comitês dos Institutos acusaram Gallo e Popovic de má conduta científica. As acusações foram canceladas em 1993 por causa de pressão de funcionários do alto escalão do governo, segundo Crewdson. Ele diz que havia um motivo financeiro para apoiar Gallo: no fim de 1986, seu teste estava arrecadando US$ 4 milhões por ano para o Departamento de Saúde e Serviço Social.
Em 11 de julho de 1994, o departamento finalmente reconheceu que "um vírus providenciado pelo Instituto Pasteur foi usado pelos cientistas que inventaram o teste de HIV americano em 1984". Uma restituição de US$ 6 milhões foi prometida aos franceses. Isso foi o mais próximo que os EUA chegaram de uma desculpa depois de defender Gallo por uma década.
Gallo e seus advogados o pintaram como um cientista com defeitos, mas brilhante, tentando descobrir a verdade e salvar vidas enquanto outros o atormentavam com minúcias legalistas. Mas o Escritório de Integridade na Pesquisa disse em 1993 que Gallo "atrapalhou seriamente o progresso na pesquisa da Aids" ao minimizar as descobertas francesas por tanto tempo. Seus passos para negar aos franceses a patente do teste nos EUA também tiveram, sugere Crewdson, terríveis consequências. Vários estudos mostraram que, ao menos até 1986, o teste de Gallo era inferior à versão do Pasteur. Alguns americanos contraíram Aids depois de receber sangue considerado seguro pelo teste de Gallo.
"Science Fictions" tem uma falha significativa. Crewdson estava determinado a deixar que os fatos falassem por si mesmos -e eles o fazem. Mas sua narrativa teria se beneficiado se ele se libertasse com mais frequência das minúcias de seu caso para conseguir perspectiva e análise. Ele culpa autoridades, cientistas e jornalistas por ajudar Gallo a perpetuar suas "ficções". Mas a narrativa é tão complexa que os leitores podem simpatizar com os que hesitaram em condenar Gallo.
Na última página, Crewdson diz que apenas Gallo pode responder "a pergunta mais intrigante" levantada por essa história: "Teria ele convencido a si mesmo de que todas as suas mentiras eram verdadeiras? Ou saberia da verdade o tempo todo?". Gostaria que Crewdson tivesse se esforçado mais para chegar a uma resposta.
Esse ponto leva a outro: o comportamento de Gallo era tão extremo a ponto de ser anômalo ou foi encorajado pelo que Crewdson chama de uma cultura científica "hipercompetitiva"? Se a segunda hipótese é a verdadeira, o que pode ser feito para reduzir a possibilidade de tais incidentes? Se "Science Fictions" forçar os cientistas a pensar nessas questões, já terá servido a seu propósito.


Science Fictions
A scientific mystery, a massive
cover-up and the dark
legacy of Robert Gallo
672 págs., 27,95 dólares de John Crewdson. Little Brown & Company.


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