São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

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Unanimidade sábia

Experimento mostra que peixes em cardumes tomam decisões baseados em percepção de quórum

Matsonashvili Mikhail/Shutterstock
Quando um indivíduo em um cardume percebe mudança do comportamento na maioria, ele também muda de direção

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Ser "maria-vai-com-as-outras" não é considerado muito digno de um ser humano, mas entre muitos outros animais esse comportamento literalmente salva vidas. A segurança adicional proporcionada pelos números ajuda a explicar a existência de coletivos -rebanhos, alcatéias, formigueiros, cardumes de peixes e por aí vai. Mas pouco se estudou sobre os mecanismos de decisão desses bandos, especialmente entre os animais superiores, os vertebrados.
Lá estão as leoas. Para onde o bando de zebras decide ir para tentar escapar da ameaça? Ali está um golfinho ou um tubarão. O cardume vai para bombordo ou boreste? Um elegante e simples estudo com peixes mostrou agora que essa "sabedoria das multidões", a decisão coletiva, se baseia na percepção de um quórum. Quando o indivíduo percebe que a maioria resolveu nadar quinze graus a boreste, ele rapidamente aceita a decisão, e em breve todo o cardume busca a nova rota.
Se há mais de uma barata descansando debaixo de uma pedra, já se observou que elas tendem a ficar mais tempo ali. Em uma espécie de formiga, notou-se que a probabilidade de uma delas liderar um grupo para um novo ninho aumenta de acordo com a população de formigas do novo ninho.
Um grande cardume pode passar a impressão de que, no fundo, é apenas um maior e tentador alvo para os predadores. Mas não é bem assim, de acordo com o principal autor do novo estudo.
"O cardume provê uma excelente defesa contra predadores. Ela funciona por um processo conhecido como o efeito-confusão: quando confrontado com múltiplas presas idênticas, um predador acha difícil lançar um ataque. Do mesmo modo, os predadores têm dificuldade em se aproximar furtivamente de grupos porque existem muito mais indivíduos vigilantes, a chamada hipótese dos muitos olhos. E o cardume também é considerado vantajoso em ajudar os peixes a localizar comida mais eficientemente", disse à Folha o principal autor do estudo, Ashley J. W. Ward, do Centro para Biologia Matemática da Universidade de Sydney, Austrália.
Os experimentos que mostraram a importância do quórum foram feitos com um peixe de água doce do hemisfério Norte popular em laboratórios, o Gasterosteus aculeatus, conhecido como esgana-gata devido a seus espinhos.
Peixes, dizem os autores do estudo publicado na "PNAS", a revista da Academia Nacional de Ciências dos EUA, são ideais para esse tipo de estudo, pois, além de mostrarem comportamentos coletivos complexos, podem ser testados em laboratório: bastam alguns aquários.
A equipe de cinco pesquisadores da Austrália, do Reino Unido, dos EUA e da Suécia criou um aquário-teste com 80 centímetros de largura e 1,5 metro de comprimento. De um lado havia uma câmara plástica removível onde os peixes eram concentrados. Do outro lado, cortado ao meio, havia dois possíveis refúgios, áreas sombreadas que os peixes dessa espécie preferem.
No caminho -em uma das bifurcações- os pesquisadores colocavam uma réplica em resina de um peixe da espécie se movimentando para um dos refúgios ou uma réplica de predador de esgana-gata.
Foram testados peixes sozinhos e outros em cardumes de até oito peixes; também se experimentou colocar duas ou três réplicas, criando um pequeno cardume falso, para ver o efeito nos peixes sozinhos ou em grupos. E às vezes o predador falso marcava presença.

Duas cabeças
"A probabilidade de um indivíduo agir irracionalmente em uma dada situação pode ser razoavelmente alta, mas a probabilidade de dois indivíduos agirem irracionalmente da mesma maneira é muito pequena, por isso em vez de simplesmente copiarem cegamente as ações de um indivíduo, os animais se beneficiariam ao filtrarem esse comportamento estranho, esperando um quórum de pelo menos dois indivíduos para seguir", afirma Ward.
Um bom exemplo disso foi um dos testes mais simples. Quando havia apenas uma réplica do predador em uma das bifurcações, peixes sozinhos escolheram o caminho alternativo em 19 de 20 experimentos. Apenas um se "suicidou" nadando na direção das mandíbulas do predador.
Mas o efeito "maria-vai-com-as-outras" era claramente perceptível quando os cientistas colocavam duas ou três réplicas indo na direção do predador. Mesmo em grupos de dois indivíduos, em 80% dos casos eles seguiam as réplicas da mesma espécie na direção letal.
Mas cardumes maiores, de quatro ou oito peixes, não se deixavam enganar tão fácil: só "erravam" o caminho entre 30% e 40% das vezes.
Ou seja, os testes mostraram que para um peixe, vale a pena se enturmar. Ao se juntar a um grupo e ao responder às ações dos outros de acordo com o quórum, o indivíduo ganha uma vantagem no processamento de informações. E a informação correta significa não virar comida, poder se reproduzir e deixar descendência.


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