São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2008

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+Marcelo Gleiser

Memórias quentes e geladas


Devemos tratar a variação solar com respeito, mesmo quando é pequena


Uma das questões que aparecem com freqüência quando se debate o aquecimento global é o papel do Sol no clima da Terra. Sendo nossa principal fonte de energia, pode-se imaginar que variações na atividade solar afetam a quantidade de calor recebida aqui na Terra e, conseqüentemente, o clima.
Em geral, esse tipo de questão vem daqueles que duvidam de que o aumento atual na temperatura global seja de fato causado por fatores antropogênicos, isto é, gerados pelo homem -ou, mais precisamente, pela queima dos combustíveis fósseis que sustentam a máquina industrial do planeta. Segundo o argumento, um aumento da atividade solar nos últimos cem anos poderia mais do que ultrapassar qualquer efeito oriundo de nossas atividades poluentes.
Estudos da irradiação solar mostram que a variação nos últimos 2000 anos felizmente foi muito pequena: da ordem de 0,1% até no máximo 0,6%. Se fosse alta, mesmo que da ordem de apenas 5%, provavelmente não estaríamos aqui pensando sobre o aquecimento global. Note que variação não é o mesmo que aumento. A irradiação solar comporta-se como uma onda, aumentando e diminuindo ciclicamente. A variação é a diferença entre o máximo e o mínimo de irradiação.
Variações de até 0,6% concentram-se principalmente em datas antigas, dada a dificuldade de obter dados precisos. Nos últimos 300 anos, foi de 0,1%, em média. O pico de atividade tende a coincidir com o pico do chamado ciclo solar, que tem uma duração média de 11 anos. Um dos sintomas da atividade é o número de manchas que surgem na superfície do Sol; quanto mais ativo, mais manchas aparecem. No auge de um ciclo, mais de cem manchas podem aparecer. Por outro lado, no mínimo de um ciclo, o número pode ser de uma ou duas manchas. Ou, como nos meses de julho e agosto passados, nenhuma.
Quanto à questão do papel do Sol no aquecimento global dos últimos cem anos e, principalmente, dos últimos 15 anos, modelos de variação climática usam uma variação na irradiação solar de 0,25%, ou seja, acima do valor medido de 0,1%. De fato, dados sobre a variabilidade na atividade solar são pedidos aos especialistas da Nasa e de outras entidades que monitoram o comportamento do Sol justamente pelos profissionais que modelam o clima. A conclusão de um estudo de 2006 publicado na revista "Nature" [Foukal, Peter et al. (2006). Nature 443 (7108): 161-166] é que é pouco provável que a variabilidade solar seja um fator relevante no aquecimento global. Os autores não descartam o possível efeito de outros tipos de radiação vinda do Sol, como a ultravioleta ou mesmo um aumento no fluxo de raios cósmicos caindo sobre a Terra, mas essas causas não parecem ser determinantes.
Olhando no sentido contrário, para baixo do solo, é possível extrair informação sobre a variação climática da Terra estudando depósitos de gelo na Antártida com idades que chegam a 800 mil anos. A neve soterrada sob um monte de 80 ou mais metros é comprimida em gelo que fica denso o suficiente para ser impermeável e imune a variações locais. Nele, em colunas de quilômetros de profundidade, ficam presas bolhas de ar contendo gás carbônico e oxigênio, cujas propriedades contam a história do clima no passado. Por exemplo, eras glaciais ocorrem em média a cada 100 mil anos, embora a sua relação com o ciclo solar ainda não tenha sido definitivamente demonstrada.
Mesmo que o Sol tenha um efeito pequeno no aquecimento global atual, devemos tratá-lo com respeito. Se as variações aumentarem, a vida na Terra será impossível.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"


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