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Nina Horta

O chef jogado aos leões

Um chef que simplesmente cozinha? Não, o chef fala. Sonha. Pensa. Conversa sobre comida. E escreve

FUI CONVIDADA para assistir à sabatina da Folha em que Alex Atala seria interrogado pelos brilhantes Carlos Alberto Dória, sociólogo, Josimar Melo, nosso crítico de gastronomia, Vinícius Queiroz Galvão, editor do caderno "Comida", e Cláudia Lima, editora do UOL Receitas e Restaurantes.

Lançado aos leões, diríamos. Mas eram leões saciados, luzidios, até um pouco blasés, conhecendo de antemão o discurso do chef.

Não queriam comê-lo, queriam ver como andava o tal discurso, queriam abocanhar alguma distração, ver como se estaria apresentando mundo afora. Leões confiantes, levemente orgulhosos do rapaz, aposto que sabiam todas as respostas. Para eles, uma avaliação; para o Atala, um treino. Senti assim.

Pensam que é sopa ser o sétimo do mundo? É simplesmente um inferno. Os leões capricharam na sabatina. Além de cozinhar, o chef tem um discurso (eles precisam ter discurso), aponta caminhos, sabe qual tendência é relevante no mundo contemporâneo, há de ser autêntico, há de explicar o que é ser autêntico, reconhecer exotismos, escolher atalhos de um Brasil de estradas longas.

Um chef que simplesmente cozinha? Não, o chef fala. Sonha. Pensa. Conversa sobre comida. Escreve, aparece na TV, enfeita a capa das revistas, deve ter um site e um blog.

Alguém perguntou a ele a receita do patê de alho? Não! O chef é um ser político. Cada garfada é um ato pensado. Ser chef é entender de luxo, de fome e de status. De comida orgânica, criativa, simples.

É claro, tem de saber cozinhar, mas tem de contar quem é sua mão direita, quais chefs brasileiros admira, detalhes de sua cozinha, dos estagiários, quem é que aguenta o tranco enquanto ele viaja, quem é que permite que ele olhe pela janela e enxergue a devastação ecológica, o pobre e o rico, o novo homem onívoro.

E o consumo ético? E como o chef ganha seu dinheiro? O quê? Fez propaganda de panelas, tem interesses, vai salvar um tipo de arroz?

Põe no bolso as gorjetas? Quanto dinheiro deve? É artista? Que o chef não se distraia, precisamos ir além do seu peixe frito, que largue tudo e investigue as condições sociais da produção e do consumo. E o apoio do Estado à gastronomia? Você foi lá discursar para o ministro, chef? Foi uma leve patada de gato.

E suas opiniões sobre a cozinha molecular, as cozinhas étnicas e os outros chefs brasileiros? E como foi que o Gastón Acurio, peruano, conseguiu o apoio do Peru para projetar a cozinha peruana? Você não ganha nada para fazer a mesma coisa?

Bem, a maior prova de que a cozinha anda desesperadamente na moda veio dos espectadores. De um menino de dez anos, um minúsculo Mozart das panelas, com um celular em punho mostrando suas técnicas e receitas. Nos Estados Unidos, são chamados de "foodie children", crianças que comem miolos em restaurantes coreanos e cozinham em casa. O menino contou ter comprado o "Dona Benta" por R$ 199,50, talvez o primeiro erro de uma carreira promissora. Contou de seu sorvete criativo que mistura a receita de torta de morango com outra, mas "com meu toque pessoal", avisa.

Final feliz: o cristão Atala saiu ileso das garras leoninas. Salvou-se, como se salvaram todos. E muito bem.

ninahorta@uol.com.br

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