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Nina Horta

Repetir, repetir...

Queremos o gelado muito gelado, de trincar os dentes, o quente muito quente, de queimar a língua

COZINHEIROS, VAMOS combinar, o difícil na profissão é o mais fácil: acertar a mão no sal e no açúcar, tirar do forno na hora certa, fritar sem ressecar, deixar o pudim cremoso. E aceitar que erramos, que precisamos melhorar, que as coisas não podem e não devem sair mais ou menos. A alegria da profissão é fazer o melhor possível e em equipe.

Conheço um cozinheiro que nem é lá essa coisas, mas está aprendendo e leva muito jeito. A virtude dele é a autocrítica, aceitar seus erros, rir e tentar consertá-los. Já repararam em quantos pratos já surgiram por causa de uma distração?

Pedro, senhor Pedro, tão alto e bonito, cozinheiro novo, homem dos risotos! O biscoito estava bom, mas a cobertura de chocolate... Vá fazer mil vezes, mil vezes ou até que fique perfeito como se tivesse saído da loja da Pati Piva.

Temos mais é que aceitar as dificuldades do caminho, estudar e dar de tudo para ser bom, para acertar. Temos de procurar com os que já sabem o que não sabemos ainda. Não existe um trabalho perfeito que não se apoie em padrões conhecidos.

Que vontade de ter um laboratório como o Rodrigo, do Mocotó, como o Atala, ou, mais chique ainda, um "taller" como o do Fernan Adrià! Ah, e justamente dei aí exemplos de quem aprende e passa o que aprendeu para a frente. Noutro dia, o Rodrigo me deu a receita dos seus dados de tapioca, sem gemer. É um cavalheiro do Norte esse menino.

Atala espalha tudo o que sabe, com prazer, e o Ferran, Deus me livre, Ferran escreve absolutamente tudo o que faz, nunca se viu antes um "taller" tão documentado.

Queremos pouca coisa, as mais comezinhas, o suco das frutas só com o doce próprio delas. O gelado bem gelado, de trincar os dentes, e o quente bem quente, de queimar a língua. A fritura nada oleosa, a massa da torta crocante, os legumes "al dente" e o macarrão também.

Nosso reino por um "taller". Um lugar onde a coisa seja repetida tantas vezes que passe das mãos ao cérebro e se reproduza com perfeição. O primeiro degrau seria concentrar, depois repetir e repetir, ganhar o ritmo. Fazer paçoca de pilão é adquirir uma técnica. Estamos obedecendo a um ritmo, a uma coordenação.

Há anos me intrigo com os dobradores de guardanapos de linho em festas grandes. Eles se sentam, perto do burburinho da cozinha, e começam a dobrar mais de mil guardanapos. O mundo pode cair, não sentem fome nem frio. Envolvidos no próprio trabalho, só o que querem é que, ao começar a festa, o linho esteja sobre a mesa. Dali para dobraduras de cisnes, caixinhas, flores e cisnes pescoçudos é só um passo. Se quisermos inventar um canapé novo no laboratório é só coalhar a mesa de ingredientes estapafúrdios e deixar que por uns momentos brinquemos como crianças.

O cozinheiro tem orgulho daquelas artes que se demora a aprender e que amadurecem e se desenvolvem com o tempo. É bom se sentir dono daquela prática, a colaboração da cabeça com o corpo. A técnica sai de dentro: começa na cabeça, é passada para as mãos e a repetição reforça o aprendizado. Assim podemos transformar o cru no cozido, podemos -por que não?-, reconfigurar, mudar o mundo.

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