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Nina Horta

Dê um banho na sua criança

Quando comecei, não tinha noção de cozinha. Imaginei que, sem minha ajuda, o noivo morreria de inanição

Quem gosta de livros de cozinha vive dependurado em receitas, quer queira, quer não. De várias maneiras, ora passando os olhos distraídos, algumas vezes como se dependesse daquelas ordens para sobreviver, ora lendo, mas com a imaginação à solta, ora conservadoramente ajuizado, com as medidas já postas ao lado da receita.

Já contei muitas vezes que, quando comecei, não tinha a menor noção de cozinha. Como iria casar, imaginei que, sem minha ajuda, o noivo morreria de inanição. Como literatura culinária só existiam as revistas americanas, que, sedutoramente novas, tentavam (e conseguiram) empurrar as famílias ao subúrbio.

Acontece que, se a receita não tivesse uma foto e o nome fosse misterioso, como "Egg Surprise", eu fazia tudo como uma cega esperançosa, sem ter a mínima ideia de qual seria o resultado. Uma vez me matei numa sobremesa para ter até hoje a letra do meu pai sob a receita: "o conhecido pudim de pão".

Com o tempo, perdi a inocência. Era só ler e saber se daria certo ou não. Com bons escritores como Pedro Nava, Proust, Elizabeth David, M.K Fisher, Marcella Hazan, Mara Salles, Rita Lobo, não há problema de visualização. Passam a ideia do lugar, do tempo, do jeito, dos problemas, das correções, do gosto, dos dourados, do úmido e do salgado, num linguajar de todo dia que toca todos os sentidos.

Acho que a graça de uma receita é ver a comida final emergindo dos objetos que usamos, da colher de pau, do processador, do fogo, uma mistura de lembranças de outras mãos lidando com aquilo, dos cheiros, sem nenhuma dúvida, da comparação de livros, de pequenas informações daqui e dali.

A receita geralmente (nem tanto quanto gostaríamos) relata uma experiência do autor, levada a cabo através da prática, dos sentidos, e que nos dá a esperança de copiar e acertar, chegando a um resultado semelhante. Na verdade, a receita não precisa nos imobilizar naquelas poucas palavras, pois é preciso não esquecer o autor, onde estava ele, como trata os ingredientes, a ideia do tempo, do lugar, das influências e até dos filmes, das viagens, enfim, de tudo.

Só que cada cultura manobra seus sentidos e prática de um modo diferente. Isso também é preciso interpretar. No livro "O Artífice", Richard Sennett dá uma receita que arrancou de sua professora persa e que funciona por meio de analogias. Vou editar para caber aqui.

Dê um banho na sua criança (galinha), preparando-a para o novo modo de vida que se aproxima (desosse-a). Trate-a com carinho, vista nela a roupa dourada (doure-a antes de assar) e alimente-a com a comida de que ela gosta, sem exagero (recheie-a). Ela deve estar com frio. Leve-a para um lugar quente (forno), mas não excessivamente quente, pois as crianças têm a pele delicada que pode se romper e a criança pode até morrer (temperatura e o perigo de queimar). Cubra-a de joias e lembre-se: você vai mostrar aos outros a sua pequena (molhos e apresentação).

O mundo está cheio de receitas. É prestar atenção para escolher aquelas que mais combinam com o nosso modo de ser.

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