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Nina Horta

A criatividade e os costumes

Queria que vissem a cara dos encarregados ao fazer a mudança. Era como se o mundo estivesse caindo

Pois, então. Na minha frente um enorme salão de festas vazio. Um retângulo. Quando cheguei, os maîtres já haviam colocado os bufês, encostados simetricamente às paredes.

Esperavam os convidados que sairiam da sala de conferências. Abrindo um pouco a porta era possível ver que não estavam lá 600 pessoas, como esperávamos, e que provavelmente cem iriam embora.

O salão era grande demais e seria preciso fazer qualquer coisa para que os convidados se sentissem mais aconchegados.

O ideal seria aproximar os convidados da cozinha, melhorando o serviço e o atendimento, pois os garçons não precisariam andar léguas toda vez que saíssem da copa.

Propus então eliminar metade da sala atravessando um dos bufês no sentido da largura do lugar. Dali em diante estariam os outros bufês, os bares, os pufes, as inevitáveis palmeirinhas etc. e tal.

Queria que vissem a cara dos encarregados ao fazer a mudança. Era como se o mundo estivesse caindo, como se tudo que lhes tivesse sido ensinado até aquele dia ruísse sob o poder de uma senhora maluca.

Como se todas as mesas e os bares estivessem há milênios pregados naqueles lugares.

Juro que não é exagero. Um deles, o chefe da brigada de garçons, surtou, entrou em convulsão e gaguejou: "Mas como? Mudar?".

Não faltou explicação. "É para o bem de vocês. Ficarão mais perto da cozinha para reposições, para servir os aperitivos, para repor as bandejas. As pessoas vão estar mais juntas, com acesso a tudo ao mesmo tempo, o bar não ficará a mais de um quilômetro de distância, todos circularão à vontade e poderão conversar melhor."

Não havia jeito. Não é que não tinham jogo de cintura; não tinham cintura. Seria mais ou menos como desmandar uma ordem de Cristo, do Espírito Santo e de Deus juntos.

Aproveitei que o susto já se instalara e mudei tudo. Usei o que não era para usar, baguncei da cozinha ao salão. No fim da festa que foi ótima, íntima, alegre, à pergunta se havia sido melhor, respondiam animados: "Ôooooooooo!".

O simples mudar a posição de móveis em uma sala pode levar à completa desestruturação de pensamentos de um homem.

Digo homem, pois as copeiras, apesar de não entenderem de imediato, logo se acomodaram à novidade. (Sempre acho que nós, mulheres, somos como as galinhas. Nós nos acomodamos em qualquer galinheiro, pois a maior preocupação é o ovo. Se há onde botá-lo, o resto que se dane.)

Não há aqui juízo do que é melhor ou pior. Os muito criativos também erram. Aliás, devem errar mais, entusiasmados com qualquer novidade, prontos a mascar e morrer por qualquer chiclete exótico.

Só me chateio com os anos, com o atraso, com o tempo que se passa entre uma invenção e a aceitação dela. Enquanto isso, espero com fervor o dia em que chegar a uma festa e descobrir que os maîtres colocaram os bufês nos lugares mais adequados, e não nos costumeiros.

O dia em que todos aceitarem, como aceitam há muito tempo nos hospitais, uma colher de espessante na cozinha. Nem sempre o costume é o melhor conselheiro.

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