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Nina Horta

As receitas de Carmencita

Ela se aproximava da morte alheia com uma naturalidade que mostrava sua imensa sabedoria

MINHA CARMENCITA, "poil de carotte", cabelos de fogo. As memórias começam lá longe, uma foto pequena, em Itatiaia, nós duas sentadas numa ponte, de uniforme de bandeirante, debaixo de uma primavera incrivelmente florida.

Quase inacreditável termos sido tão inocentes. E vida afora ela costurou essa amizade generosa, espírito prático de quatrocentona. Costureira da vida social, sabia e comemorava nascimentos, mortes, casamentos, divórcios, para que tudo se enroscasse num desenho maior, inteligível. Para ela, pelo menos.

Das últimas vezes que a vi estava se aproximando da morte alheia com uma naturalidade que mostrava sua imensa sabedoria. Adorava viver, mas entendia que morrer é a consequência óbvia e frequentava velórios numa boa, consolando os amigos, desde sempre.

Que eu saiba, não era a Carmencita de ninguém, só minha. Carmem Vieitas Vergueiro. Ela me fez ir com ela ao Mocotó para comprar doces de frutas brasileiras. Pobre desculpa, pois os fazia melhor do que qualquer um. Queria era conhecer o Rodrigo [Oliveira], que se mostrou inteiro em sua lordeza do norte. Estávamos combinando outra ida lá.

Orgulhosa do sobrinho-neto, Gil Carvalhosa, do Le Jazz, provara todos os pratos, principalmente as sobremesas com altos elogios e carinho. Pedia uma receita aqui outra acolá, mas não regateava as suas. Nossa receita de paçoca de carne é dela, explicada "tim tim por tim tim" com sua letra bonita de Des Oiseaux. Três carnes diferentes. Não gostava de incomodar o bufê e fizera amizades por baixo do pano, telefonando direto para Sueli, e talvez para o Carlos Siffert, que adorava as histórias dela.

A certa altura, quando Don Martha Kardos, professora de cozinha, já estava bem velha e não podia se esforçar demais, Carmen chegou e arrasou, tornando-se a aluna predileta, pela força ao bater um bolo, os ovos, e de cortar, costurar. Era cozinheira de mão cheia.

Adorava a família. Há uns 30 anos se encontrou com minha mãe e descobriram afinidades. Aprendeu com ela a fazer flores de papel crepon, que depois reinterpretava a seu jeito. Recebi a notícia de sua morte de sopetão. Ah, Carmencita, suas mensagens, suas cartas, suas receitas.... A preferência era escrever no verso dos envelopes de convites de casamento. Para que gastar uma folha nova com aquela vastidão branca dos convites?

Recebi sua receita de barreado sobre uma duna de areia branca, em Salvador. Falando só de comida para não falar de flores, que era seu hobby preferido, cabelos vermelhos e dedos verdes.

Nesses últimos meses tivera uma rebordosa das boas, quase morreu, foi para na UTI, detestou, e, enquanto convalescia, só queria se informar comigo que panelas pedir para os filhos no dia do aniversário.

Queria renová-las, que não fossem pesadas demais, nem deixassem a comida pregar no fundo. Estava à toda, nadando, tendo aulas de francês, recomeçando. "E para de fungar, Nina." Não gostava e não admitia queixas e choramingas.

Só nos resta sentir saudade dela sem fungar. Vou fazer o possível.

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