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Bicho de bom gosto

"Cuícas são incapazes de comer café verde ou estragado", diz especialista; colheita dos grãos cuspidos pelos animais é realizada manualmente por roceiros que se agacham junto aos pés de café e pegam grão por grão

Marcelo Justo/Folhapress
Seu João joga os grãos de café cuspidos pelas cuícas, na fazenda Camocim, no Espírito Santo
Seu João joga os grãos de café cuspidos pelas cuícas, na fazenda Camocim, no Espírito Santo

DA ENVIADA ESPECIAL A PEDRA AZUL (ES)

Seu João Pagio Fiorezi, 61, fornece mudas de café há 25 anos para a fazenda Camocim, no Espírito Santo.

Na última quinta-feira, ele subiu na caçamba do pequeno caminhão com a reportagem da Folha para garimpar os grãos de café deixados para trás pelas cuícas.

Seu João saltou do caminhão, adentrou o cafezal, aproximou-se de uma árvore em área mais reservada, ou seja, mais afastada de casas e estrada, e mais perto da mata. Agachou-se e abriu os galhos mais baixos para espiar.

"Esse é o café da cuíca", disse, pegando um punhado de grãos despolpados (sem casca nem polpa) nas mãos. Aquele café tinha cheiro forte, remetia à terra e ao universo animal -mas o odor não chegava a ser ruim. Os grãos estavam com uma gosma, ainda resquício do mel do café.

TÍMIDAS E CRITERIOSAS

E as cuícas? Não foram encontradas nem por decreto. Enfiam-se no meio da mata e ali ficam, escondidas.

São animais ariscos e noturnos, que gostam de comer somente os grãos adocicados, no ápice da maturidade.

"Elas têm um ótimo critério de seleção. São incapazes de comer café verde ou estragado", diz Evair de Melo, presidente da Incaper (Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural), que ajudou a desenvolver os cafés de jacu e cuíca na fazenda (leia perfil ao lado).

As cuícas surgem por ali aos montes porque a área é circundada de parques nacionais e mantém parte da mata nativa -à semelhança da cabruca, o sistema de plantio de cacau típico do sul da Bahia, que conserva a mata para sombrear os cacaueiros.

Na propriedade de produção orgânica, pipocam hortênsias arroxeadas, margaridas do mato amarelinhas, amarelinhas e pitangueiras carregadas de fruta.

A colheita desses grãos cuspidos pelas cuícas é trabalhosa, feita manualmente por roceiros que se agacham junto aos pés de café e pegam grão por grão acomodando-os em sacolas a tiracolo.

É fundamental que seja realizada regularmente para que os grãos não fermentem sobre o chão -é comum ficarem protegidas pelas folhas das árvores da mata ali conservada, que servem de adubo natural ao cafezal.

Os grãos colhidos são transportados para secar em um terreiro suspenso, protegido por estufa, com umidade e temperatura controladas. Depois, são separados de gravetos e afins manualmente e estocados na tulha para que descansem antes da torra.

Para chegar à xícara, passa por testes de perfis diferentes de torra, provas profissionais -quando o grão é moído grosso, entra em contato com a água quente e é sugado de forma a cair homogeneamente sobre a língua.

O JACU PIONEIRO

A cuíca não é, contudo, o primeiro animal a "participar" do processo de produção de cafés especiais no Brasil.

Quem emplacou de forma pioneira foi o jacu -ave robusta, com bico pronunciado e papo vermelho. Seu café foi vendido pela primeira vez em 2007, também pela fazenda Camocim. Atualmente, são produzidos 950 quilos por ano a R$ 450, o quilo.

Conhecido como "faisão brasileiro" e também semelhante a um urubu, esse animal era uma praga para a plantação de café.

"O jacu comia muito do meu café, dava o maior prejuízo", diz Henrique Sloper, dono da Camocim. "Muitos fazendeiros matavam o bicho, ficou quase extinto."

Inspirado no kopi luwac, o famoso café da Indonésia, cujos grãos são retirados das fezes da civeta (animal semelhante ao gambá) e que podem custar US$ 493, o quilo (cerca de R$ 1.000), o café de

jacu surgiu para solucionar esse problema no cafezal.

"O que era uma praga virou fonte de um produto de alta qualidade", diz Sloper.

Tanto o jacu quanto a cuíca escolhem os frutos mais maduros e sem defeitos para se alimentar -por isso, geralmente, resultam em bebidas de doçura acentuada.

PREÇO

O fazendeiro vê nesses cafés exóticos uma grande fonte de lucro. Ao consumidor, resta a pergunta: vale mesmo pagar um valor tão alto?

Especialistas apontam pequenos problemas na primeira amostra, que podem ter sido gerados pela torra excessiva. Sloper, por sua vez, diz que ainda fará ajustes nessa etapa para que possa extrair o melhor desses grãos, torná-los mais delicados e adequados para o preparo no coador, método que deixa suas características à mostra com mais clareza.

Espetacular na xícara ou apenas razoável, o café com a contribuição da cuíca conta uma boa história. Não tenha dúvida: isso também tem um custo.

(LUIZA FECAROTTA)

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