Índice geral Comida
Comida
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Nina Horta

"Desembreguemos" o churrasco

Churrascos ao fim da tarde nunca seriam caipiras. É uma hora amena, e o fogo parece menos agressivo

Já que estamos dependurados no assunto breguice, brega, cafona, continuemos. Há uns 20 anos, fui pesquisar comida kitsch. Depois de muita "jequeira" na veia, cheguei à conclusão de que comida brega não existe. Não existe kitsch na cozinha. Se é bom, escapa do brega.

Pesquisando revistas dos anos 50, em que o mau gosto imperou com festas cor-de-rosa, flores de crepe roxas, babosas pintadas de prateado com bolas de Natal nas pontas, cachos de coquinhos pintados de dourado no Natal (até hoje acho lindo), cascatas de camarão sobre papel-alumínio, cerejas de chuchu com fios de ovos, descobri que, se a comida for gostosa, corta o brega.

Havia na revista "O Cruzeiro" uma página da Helena Sangirardi, se não me engano, que, de tão absurdamente horrenda, transcendia a feiura. Hoje, viraria cult. Tenho uma das fotos da revista, um castelo com o telhado de rosbife sangrento, com direito a anões de jardim em marzipã sentados em cogumelos crus, chão verde de glace, haja!

E se o anão fosse a mais deliciosa massa de amêndoas já provada, o rosbife uma carne de primeira, no ponto? O cercado de Yorkshire pudding e com lampejos de raiz forte?

Bom, teríamos de dizer que era horrendo na apresentação, mas de paladar infinitamente bom, o que o desclassificaria da condição de brega. Comida só é brega quando é ruim. Vamos a exemplos candentes.

Churrasco na laje. O que é brega, o churrasco, a laje? Claro que não. Somos nós, de bermuda, suados ao sol do meio-dia e com o fogo próximo, o sol iluminando nossas imperfeições, a cerveja quente, a gritaria, a música alta, as piadas infames. Gargalhadas, mulheres trocando a fralda dos bebês remelentos, TV ligada no futebol, farofa e pão de queijo frios para aplacar a fome do churrasco que nem foi posto no fogo, ainda. Pequenas linguiças queimadas, asinhas de frango negras.

Mas, acreditemos, não é o churrasco que é brega. Somos nós. Ele é uma das coisas mais geniais na nossa comida brasileira.

Grelhas, chapas, caldeirões, espetos e o fogo -principalmente- só podem elevar o espírito. São bonitos. O fogo, então, a chama... Lenha, fogo e carne, a mistura que não suporta a pecha de brega por ser nobre e simples, milenar.

Vejam o livro do chef Francis Mallman e do jornalista Peter Kaminski. Fotos incríveis ao pôr do sol. Fogo, muito fogo à beira de lagos da Patagônia. Sete fogos. Churrasco ao estilo argentino.

Quem sabe é o churrasco do meio-dia que é brega? O desconforto do calor, as bermudas amassadas, a música alta, uma secura generalizada que é molhada só pela cerveja quente e pela farofa fria? O pandeiro, a risada alvar, a cachaça pródiga? Ou faz parte?

Churrascos ao fim da tarde nunca seriam caipiras. É uma hora doce, amena, o fogo parece menos agressivo, nós já nos acalmamos, o calor amainou, a lua vai nascendo...

Por sinal, o Francis Mallman conta uma lenda: "Na tradição dos povos originários, o fogo era propriedade dos animais, o pequeno tatu, a ágil lebre patagônica e o feroz puma". Uma coisa roubada dos deuses só pode ser bonita e boa. "Desembreguemos" o churrasco.

ninahorta@uol.com.br

Leia o blog da colunista
ninahorta.blogfolha.com.br

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.