São Paulo, quinta-feira, 03 de novembro de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

NINA HORTA

Comida brasileira de verdade


Poderíamos oferecer o que o brasileiro come, aquele que come e que não filosofa sobre a comida, só come

AI, AI, ai, agora podemos ter certeza de que a cozinha brasileira está na moda no Brasil. Até uns meses atrás isso era conversa de gulosos, antropólogos, alguns donos de restaurante intelectualizados, críticos e interessados. Hoje chegou nas assessorias de imprensa e nos eventores e promotores.
Vai arribar nas nossas praias um estrangeiro importante. E vai precisar comer. Antes queriam servir a comida do país do visitante, como curry para os indianos e salsichas para os alemães. Os bufês se esfalfaram de dizer que não era educado.
Imagina você, brasileiro, resolver gastar o seu rico dinheirinho com uma viagem à Tailândia dos seus sonhos. Chega lá e já é recebido com uma homenagem à altura. Uma bela feijoada -e antes fosse bela.
O mais provável é que você ria muito do resultado conseguido. Ou uma farofa com dendê. "Raios, viajei tanto para comer comida malfeita do meu próprio país!", seria provavelmente a sua reação.
E então, imaginamos que a comida mais educada a se servir ao estrangeiro é a do Brasil, no caso, mas tomando-se os devidos cuidados, tendo que amansar uma pimenta, uma farofa, para que o hóspede não estranhe e adoeça.
Mas, viva, os eventores querem comida brasileira! Certo. Você manda um cardápio com entradinhas de mandioca, tudo bem pequeno, como telhas de biju, que eles adoram. Depois, um bacalhau em tiras, misturado com ovo e batata palha, quer comida mais brasileira que bacalhau? "Não", retruca a menina eventora inteligente. "Bacalhau é norueguês e português."
Bem, tem lá suas razões, mas se formos atrás da comida dos índios, seria a farinha, talvez um lagarto ou um macaquinho moqueado. Um belo peixe seco, um pirarucu. Pode ser. Vamos fazer um peixão do Amazonas, um pirão, (para disfarçar a farinhice), uns palmitos... Nada de mangas, nem coco, nem quindins, nem doces d'ovos, nem compotas, devagar com a louça, tem que ser brasileiro-brasileiro.
Poderíamos oferecer o que o brasileiro come, aquele que come e que não filosofa sobre a comida, só come. Do sul ao norte, com diferenças mínimas vamos ter o arroz com feijão, verdura, salada, um bolinho e um pedaço não muito grande de carne de peixe, ave ou vaca.
Ah, desmaia a promotora, "mas estou recebendo visitas importantíssimas, o rei da Bowela, a editora da 'Mode', vou dar arroz e feijão?". Pois é, minha filha, fomos colonizados, se quiser uma globalização, dá, mas comida brasileira antes de Cabral... Não vai dar não, não vai dar não... Os próprios brasileiros vão estranhar aquele pequi cheiroso, aquele tucupi da mandioca.
Acho que os experts em comida podem continuar seus estudos brasileiros, mas há que ter duas vertentes. Comida brasileira de verdade e picadinho carioca para eventos.
O picadinho será rebatizado, convertido, "antropofagizado", canibalizado, esqueceremos as origens da carne ensopada, das batatinhas fritas, do tomate, do arroz, e ficaremos com as bananas-da-terra (sei lá), os ovos de macuco (índio não conhecia vaca, nem galinha) e muita farinha. Se possível, lançada na boca de longe, o que faria a festa, com prosecco ou cauim, bem mais animada.

ninahorta@uol.com.br

FOLHA.com
Leia o blog da colunista
ninahorta.folha.blog.uol.com.br


Texto Anterior: Vinhos - Patrícia Jota: Diversidade na Austrália
Próximo Texto: Jantamos no 41 Grados, o novo El Bulli
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.