São Paulo, quinta-feira, 09 de junho de 2011

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NINA HORTA

Os penetras comilões


"Gente, que mesquinharia, há um limite para o tanto que uma pessoa pode comer. Deixem que comam"


NUNCA TIVE CORAGEM de contar essas coisas por achar que minha credibilidade iria balançar. Mas não resisto. De vez em quando fazemos festas com entrada grátis e livre. Por exemplo, um banco patrocina um musical e na estreia oferece um coquetel. Outro defende uma tese, e quem aparecer é lucro.
E o maître e outras pessoas próximas começaram a me contar que um terço da festa havia sido de penetras, que comiam a comida toda, e o que se podia fazer para escapar da fúria comilona deles. Eu me cansei da tal conversa. "Gente, que mesquinharia, há um limite para o tanto que uma pessoa pode comer. Deixem que comam, que bebam!".
Numa dessas festas, acho que no cinema, um documentário sobre o Bob Marley, conheci a tal tribo de fila-boias. E em menos de alguns minutos percebi que não eram safados nem pobres, mas, sim, doentes. A quantidade de comida que conseguiam comer não era deste mundo. E depois, quando não aguentavam mais, punham em sacolas levadas a propósito.
Nessa mesma noite, um deles me pediu uma água. O serviço já havia parado, as pessoas começavam a entrar na sala. Prometi que em um minuto providenciaria a água dele.
Pois adivinhem o que me fez, o infame? Enrijeceu o tronco como uma árvore e "pof", caiu no chão, um defunto de madeira de olhos fechados. É claro que apareceram dezenas de copos de água, com açúcar e sem açúcar. Levantou-se e me olhou de soslaio, "num viu?", rancoroso.
Na semana passada voltou o tal de pesadelo. Exposição de arte, mas nessa altura da vida sabia que não era possível controlá-los. Melhor curtir, como no Facebook. Sentei numa beirada de palco e fiquei observando. Um homem de uns setenta anos, de bengala e óculos escuros, bem vestido, agasalhado, e a mulher chiquezinha, tailleur, lenço no pescoço, olhos pintados. Ela o segurou pelo braço, pôs um espeto na mão dele e posicionou-o em frente a uma enorme peça indígena chata, de barro, forrada de sal grosso, cheia de minibatatas com casca e ovos de codorna defumados e dourados. Ajudou-o a espetar a primeira batata, explicando: "Kartoffeln!!!". O senhor que era cego, mas não burro, espetou uma batata, um ovo de codorna, batata e ovo, batata e ovo, numa pequena sinfonia de habilidade, até encher o hashi que tinha na mão. E isso continuou noite afora, mudando só o lugar, o velho comendo como um Pantagruel, obsessivo. E ela, por cantos opostos, só voltava a se encontrar com ele quando descobria novidade.
Outra da turma também era velha, daí eu associar um pouco com Alzheimer. Cabelo branco curtinho, bem baixa, óculos, olhos vedados por um filme branco de catarata, um pouco masculina. Já muito, muito alimentada, ela sentou-se ao meu lado, na saliência do palco, de olho nos garçons. Aparecia um, corria com passinho curto incrível de rápido, alcançava a bandeja na ponta dos pés. Se estivesse vazia, voltava, sentava de novo, com cara de uma batalha perdida, mas não a guerra.
Não me venham dizer que eram pessoas com fome. Sei do que estou falando. Da próxima vez fotografo e ponho no blog. Bom, se eu, de castigo pela boca rota, não estiver na mesma condição, arrancando carne do pernil com a mão.

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