São Paulo, quinta-feira, 14 de julho de 2011

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NINA HORTA

Empregadas, assunto complicado


A patroa era minha mãe, com seu furor alfabetizador; nunca passou alguém por ela que não aprendesse a ler


ContinUO falando de empregadas, esse assunto complicado.
Minha mãe teve notícias, por uma amiga, de que as irmãs Silva haviam chegado. Iracema e Irene.
Vinham de Bebedouro, no interior de São Paulo. Era uma família grande de mulheres. Todas com nomes começados por "i". Inoêmia, Iracema, Irene, Izilda, Irma, Inelci e as gêmeas Irvani e Irvanira.
Com Iracema, tivemos, nós e ela, um período de uns 20 anos de amizade e entendimento. Na realidade, não tinha nada com isso, a patroa era minha mãe, com seu furor alfabetizador. Nunca passou alguém por ela que não aprendesse a ler e a escrever bem em tempo recorde.
Iracema era extremamente educada, doce, bonita, menos bonita que Irene, que era linda. Não conheci o pai, um negro forte que espancava as meninas quando bebia. A mãe, Dona Ursulina, branca de olhos azuis, foi quem as criou.
Bom, Iracema foi trabalhar lá em casa com uns 17 anos. Tinha paixão por cantar, voz muito bonita e, quando encanava numa música, era o terror. A Rádio Tupi era sua vida. Nas folgas, ia para todos os programas de auditório e me trazia autógrafos cobiçados, de Vida Alves, Hebe Camargo, Jorge Walter.
Íamos à missa, num surto de fervor, lá pelas 6h, friozinho de céu azul. Ela penteava meu cabelo estilo pajem, e nos mandávamos para a Nossa Senhora do Brasil, que nem existia, a missa era numa catacumba, onde é hoje o salão de festas.
Era quase impossível arrumar namorado. Muito alta. Não havia cavalheiro alto o bastante. Um dia apareceu o Zé, exatamente a metade dela. Foi uma alegria geral, mas ele sumiu, sem mais nem menos.
Minha mãe, que não deixava por menos, mandou buscar o Zé para saber que história era aquela de pedir em casamento e fugir. Ele respondeu que era a pressão dos amigos, de todo o mundo, que, por causa da diferença de tamanho, não os queriam juntos. "Nóis num orna."
Ornando ou não, casaram-se e viveram felizes para sempre. Iracema fazia um bolinho de arroz frito na hora, meio mole, com muita salsinha, que era demais, mas o que jamais consegui duplicar era uma berinjela recheada com carne moída.
A aparência não era aquelas coisas, a carne se transformava em patê, era um creme de leve tempero dentro de meia berinjela gratinada, que tinha dia certo de ser feito.
E tinha também a pescadinha do dia da feira da Lorena. Essa história de ter uma comida sempre igual nos dias de semana é bastante interessante, a cozinheira vai se acostumando e fazendo aquilo na perfeição e o comedor vai entendendo do riscado e sabe quando escapou por um milímetro de dar certo.
Impressionante era a pureza e a simplicidade daqueles almoços e jantares. Tudo feito na perfeição, mas não havia uma lata, a não ser ervilhas ("petit pois") nenhum extrato de tomate, nenhuma coisa pré-preparada. O ingrediente fresco da feira, passadinho num óleo, numa manteiga, tudo sem surpresas.
A novidade ficava para o dia em que não havia muita coisa, uma fritada de batatas em fatias com linguiça ou o mexidinho famoso. Talvez não haja comida mais gostosa no Brasil do que um mexidinho.

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