São Paulo, quinta-feira, 16 de junho de 2011

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NINA HORTA

De volta às raízes do Brasil


Quanto mais brasileiro fosse o ingrediente, mais exótico era para essa turma crescida em cidade grande


COM QUE DIFICULDADE se faz um comedor brasileiro de cidade grande!
Infância no bairro de Cerqueira César, quase esquina com a rua Estados Unidos. Vivenciar o quintalzinho, a venda do seu Salvador... E a Casa Santa Luzia, que de brasileira não tinha nada. Uma cultura de economia, a feira livre da alameda Lorena, simples, onde o mais brasileiro era uma pescada branca e uns pirulitos vermelhos em formato de revólver ou de chupeta.
Nossos pais haviam sido franceses, nós seríamos americanos. Junto de casa o cine Paulista e os filmes musicais ou de faroeste. Era glamoroso tirar letras de músicas de Doris Day e Frank Sinatra. Os filmes B maravilhosos, de vez em quando um cangaceiro, mas o resto era de origem americana. Desde a geladeira Frigidaire ou GM, às revistas, aos livros, aos carros, Studebaker, Cadillac, Buick. E a Coca-Cola. Nosso pomar dava cachorro-quente, presuntada, pêssegos em calda, gelatina colorida. O hambúrguer ainda não havia sido plantado.
Quanto mais brasileiro fosse o ingrediente, mais exótico era para essa turma crescida em cidade grande. Há uns 20 anos me dei conta desse absurdo, que nós não sabíamos quais eram as raízes da comida brasileira. Meus artigos da Folha da época não me deixam mentir.
Sai atrás de todos os matinhos e frutas, provei de tudo, gostei de uns, de outros não. Viajei, comentei as comidas do Norte e do Sul, cutuquei os mangaritos, as beldroegas, as tartarugas, as içás, as farinhas, os milhos, a cana e o melado e o coquinho. Divulguei quem se preocupava com o Brasil. Fui ao fundo, cozinhei com as mulheres de Manaus, do Acre, de Minas. Comi cuca e tucupi.
E o tempo passou e pouco ficou da nossa procura pelo "autêntico" que recomeçou agora há pouco.
Mudam os nomes dos defensores da coisa brasileira, são outros os leitores e comedores e começa o trabalho de novo, como se jamais houvesse sido, um dia, ventilado.
Agora, se eu disser que tenho fome desses capins com os quais não fui criada, vai ser mentira das boas.
Gosto de inhame e de cará e de milho, e do trivialzinho da mesa burguesa porque foi o que minha mãe me deu. Frutas e verduras do mato, entre boas e daninhas, desconfio que se não foram descobertas até agora é porque eram meio sem graça, mesmo.
Ou porque minha mãe não me deu. Quem as descobre de 20 em 20 anos somos nós mesmos, gourmets da cidade, os de língua curiosa. A maioria das pessoas come do jeito que sempre comeu, quem tem pequi na porta come, quem gosta de aluá bebe, quem come farinha com melado de sobremesa, come.
Quem foi criado em São Paulo é que não teve acesso às adoráveis caipirices paulistas. Nosso sangue tem batatas assadas de Frau Hartmann, alcachofras com farofa de pão e alho de dona Hermínia, gefilte fish de Judith. Não gostamos de café ralo, bicho-de-pau nem de bombons de cupuaçu. Quando encontramos essas coisas, o nosso sentido de descoberta é igual ao de um gringo turista.
E nem desconfiamos que estamos descobrindo o descoberto. De novo! Até quando? Meu nome não é Sísifo, e acho que perdi o bonde.
Vou comer o que pintar e chamar de brasileiro o prato que estou comendo aqui e agora!

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