São Paulo, quinta-feira, 26 de maio de 2011

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FOGO ALTO A visão de quem cozinha

LOURDES HERNÂNDEZ

Eva e a primeira mordida na maçã


A linguagem do desejo tem evocações antropofágicas: "vou te comer", "gostoso", "você é deliciosa", "cheirosa"


"DESDE QUE EVA mordeu a maçã, muito depende da comida." Verso feliz de lorde Byron, mais conhecido pela obra em que transformou sua vida do que pelo ofício de poeta.
Desde que Eva deu a primeira mordida transgressora, a comida ordinária virou uma extraordinária história. Mitologia, acasos e obsessão fizeram do ritual da alimentação uma espécie de tabu.
História paralela à evolução desse primata predador que, obrigado a abandonar o bosque, desce à savana e bate de cara com a necessidade não só de procurar alimento, mas também de armazená-lo.
Muito antes de me interessar por esse tema, fome e prazer, para mim, eram coisas indistintas e festivas.
Adolescente, devo ter registrado no subconsciente que era via estômago que eu ia conseguir conquistar aqueles alvos do meu desejo, e ainda antes de saber quem era Bachelard, soube, que, de maneira louca, o mundo vira comestível quando a gente é feliz.
A linguagem do desejo está cheia de evocações antropofágicas: "eu vou te comer", "que gostoso", "você é uma delícia", "cheirosa", "saboroso". Sem falar naqueles verbos mais pontuais, cujo simples som já muda temperaturas e entorpece ou focaliza o pensamento.
Foi essa ferocidade canibal na intensidade do desejo que me levou, em 1994, do meu diário íntimo de "uma cozinheira" (escrito numa revista restrita ao mundo vegetariano) ao diário público de "uma cozinheira atrevida" (coluna lida num país carnívoro por excelência).
Compromissada na aventura da língua e do apetite, dediquei-me a comer tudo o que parecia gostoso, diferente, desafiante. E me dei bem.
Já passou muito tempo desde então. É verdade, continua viva e demandante minha necessidade de aprender e escrever sobre os "modos da mesa", que é como Lévi-Strauss denomina esse caráter antropológico dos alimentos revestidos de uma ordem simbólica.
O que eu realmente curto são esses momentos tão bem definidos por Vinicius e, embora não aspire a fazer a arte dos encontros, confesso que os momentos mais singulares da minha vida foram na cozinha.

LOURDES HERNÁNDEZ foi autora da coluna "La Cocinera Atrevida" em jornais mexicanos; hoje, oferece jantares em casa, em SP, para convidados


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