São Paulo, segunda-feira, 01 de março de 2010

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MOACYR SCLIAR

A banda na garagem


Seria melhor que tocassem na garagem do que no quarto, de onde infernizavam a vida dos familiares e dos vizinhos


 


Saia da garagem, procure roteiros de festivais musicais independentes em todo o Brasil. Folhateen, 22 de fev. de 2010

COMO muitos adolescentes, ele tinha uma banda. E, como muitos adolescentes, tinha de aceitar a dura realidade: nem todas as bandas são reconhecidas, nem todas fazem sucesso. E, como muitos adolescentes, fez o que podia fazer: pediu licença ao pai para usar a garagem da casa como estúdio.
O pai concordou. Em primeiro lugar, porque queria ajudar o filho e seus talentosos companheiros. Depois, porque seria muito melhor que tocassem na garagem, isolada da casa, do que no quarto, de onde infernizavam a vida dos familiares e dos vizinhos. E, por último, porque a garagem estava vazia. O homem não tinha carro; possuía habilitação, mas não gostava de dirigir, e não dirigia.
Comprara uma casa com garagem, claro, porque todas as casas têm garagem, mas por muito tempo usara-a apenas como depósito para umas poucas malas e para jornais velhos.
Ceder a garagem, portanto, parecia-lhe uma boa solução, mesmo porque provavelmente era coisa para pouco tempo. Ou a banda se tornaria profissional, o que era improvável, ou os jovens cansariam daquilo.
O que nem ele nem ninguém poderia imaginar era a surpresa que a sorte lhes preparava. Um colega de trabalho ofereceu-lhe uma rifa de automóvel. Ele não estava interessado, mas para ajudar uma boa causa (a rifa beneficiaria um asilo de idosos), comprou um número. Veio o sorteio e ele, que nunca ganhava nada, foi contemplado: foi-lhe entregue um novo e reluzente automóvel.
A primeira coisa que pensou foi em vender o veículo. Mas o chefe tinha uma proposta: se você dirigir, disse, eu posso lhe encarregar das vendas de nossa empresa em várias cidades, e você vai ganhar muito mais.
E aí estava criado o dilema. Porque o uso do automóvel seria esporádico, alguns dias por mês. O resto do tempo ficaria parado. Na garagem da casa, naturalmente. Quando anunciou a novidade ao filho, esse ficou furioso. Perderia então o seu lugar de ensaios? Justamente no momento em que a banda estava engrenando? Não, não podia concordar com isso. A discussão azedou, a mãe e outros irmãos entraram na briga.
Por fim, e milagrosamente (graças a um tio que tinha fama de conciliador) chegaram a uma solução: os rapazes da banda continuariam ensaiando na garagem. O carro permaneceria lá, o que tornava a situação um pouco incômoda, mas seria melhor do que procurar um outro lugar para fazer música.
Um dia, quando os rapazes estavam tocando, o homem entrou na garagem e ligou o carro para sair. Aquilo foi, para o filho, uma súbita inspiração: por que não combinar o som do motor com os instrumentos musicais? Experimentaram isso, acelerando e desacelerando a máquina, fazendo soar a buzina de vez em quando, e o resultado foi surpreendente. Tão surpreendente que muita gente veio ouvi-los; foram até convidados para um show numa tevê local. São considerados os pioneiros em um novo movimento, o da música motorizada.
O carro, agora, é da banda. O pai está pensando em comprar outro automóvel. Só não sabe onde vai guardá-lo.


MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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