|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
A banda na garagem
Seria melhor que tocassem na garagem do que no quarto, de onde infernizavam a vida
dos familiares e dos vizinhos
|
Saia da garagem, procure roteiros de festivais musicais independentes em todo o
Brasil. Folhateen, 22 de fev. de 2010
COMO muitos adolescentes, ele
tinha uma banda. E, como
muitos adolescentes, tinha de
aceitar a dura realidade: nem todas
as bandas são reconhecidas, nem todas fazem sucesso. E, como muitos
adolescentes, fez o que podia fazer:
pediu licença ao pai para usar a garagem da casa como estúdio.
O pai concordou. Em primeiro lugar, porque queria ajudar o filho e
seus talentosos companheiros. Depois, porque seria muito melhor que
tocassem na garagem, isolada da casa, do que no quarto, de onde infernizavam a vida dos familiares e dos
vizinhos. E, por último, porque a garagem estava vazia. O homem não
tinha carro; possuía habilitação, mas
não gostava de dirigir, e não dirigia.
Comprara uma casa com garagem,
claro, porque todas as casas têm garagem, mas por muito tempo usara-a apenas como depósito para umas
poucas malas e para jornais velhos.
Ceder a garagem, portanto, parecia-lhe uma boa solução, mesmo porque
provavelmente era coisa para pouco
tempo. Ou a banda se tornaria profissional, o que era improvável, ou os
jovens cansariam daquilo.
O que nem ele nem ninguém poderia imaginar era a surpresa que a
sorte lhes preparava. Um colega de
trabalho ofereceu-lhe uma rifa de
automóvel. Ele não estava interessado, mas para ajudar uma boa causa (a rifa beneficiaria um asilo de idosos), comprou um número. Veio o sorteio e ele, que nunca ganhava nada, foi contemplado: foi-lhe entregue um novo e reluzente automóvel.
A primeira coisa que pensou foi
em vender o veículo. Mas o chefe
tinha uma proposta: se você dirigir,
disse, eu posso lhe encarregar
das vendas de nossa empresa
em várias cidades, e você vai ganhar
muito mais.
E aí estava criado o dilema. Porque o uso do automóvel seria esporádico, alguns dias por mês. O resto
do tempo ficaria parado. Na garagem da casa, naturalmente. Quando
anunciou a novidade ao filho, esse ficou furioso. Perderia então o seu lugar de ensaios? Justamente no momento em que a banda estava engrenando? Não, não podia concordar
com isso. A discussão azedou, a mãe
e outros irmãos entraram na briga.
Por fim, e milagrosamente (graças a
um tio que tinha fama de conciliador) chegaram a uma solução: os rapazes da banda continuariam ensaiando na garagem. O carro permaneceria lá, o que tornava a situação
um pouco incômoda, mas seria melhor do que procurar um outro lugar
para fazer música.
Um dia, quando os rapazes estavam tocando, o homem entrou na
garagem e ligou o carro para sair.
Aquilo foi, para o filho, uma súbita
inspiração: por que não combinar o
som do motor com os instrumentos
musicais? Experimentaram isso,
acelerando e desacelerando a máquina, fazendo soar a buzina de vez
em quando, e o resultado foi surpreendente. Tão surpreendente que
muita gente veio ouvi-los; foram até
convidados para um show numa tevê local. São considerados os pioneiros em um novo movimento, o da
música motorizada.
O carro, agora, é da banda. O pai
está pensando em comprar outro
automóvel. Só não sabe onde vai
guardá-lo.
MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na
Folha.
moacyr.scliar@uol.com.br
Texto Anterior: Fernão Dias ficará fechada por até 6 meses Próximo Texto: A cidade é sua Índice
|