São Paulo, domingo, 01 de julho de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GILBERTO DIMENSTEIN
São Paulo brilha no escuro

Pesquisa do Datafolha publicada hoje mostra uma queda no prestígio da prefeita Marta Suplicy -numa velocidade surpreendente. Em menos de três meses, o índice de "ruim" e "péssimo" na avaliação de seu desempenho pela população pulou de 16% para 42% -coincidentemente, é hoje igual ao índice do presidente Fernando Henrique Cardoso, já em fim de governo e desgastado até a alma pelo racionamento de energia.
Além do desgaste provocado pela decisão da prefeita de conceder aumento de tarifa às empresas de ônibus e pelas suspeitas nos contratos com empresas de limpeza urbana, certamente pesaram em sua avaliação o clima geral do país, marcado pelo baixo-astral provocado pela escassez de energia, e o ambiente, ainda mais soturno, da cidade de São Paulo.
Na semana em que foi feita a pesquisa, a cidade viveu cenas de caos explícito.
Com aspecto sombrio em decorrência do racionamento de energia, acrescentado de frio e chuva, São Paulo foi acometida de uma greve de metroviários que produziu mais recordes de congestionamento. Assaltantes aproveitaram a lentidão ainda maior do trânsito para atacar -sem constrangimento.
Escuridão, chuva, frio e engarrafamentos, tudo isso mesclado à violência reforçou a sensação de ingovernabilidade e de feiúra crônica.
Mas a capacidade que tem a cidade de produzir, com igual intensidade, caos e beleza foi especialmente notável na semana passada.
Contrastando com as trevas urbanas, ocorreu, no prédio da Bienal, localizado no parque Ibirapuera, um show de requintada beleza. Estilistas brasileiros, desfilando seus figurinos na São Paulo Fashion Week, atraíram o interesse mundial para o evento. "A beleza de São Paulo é fabricada pelo cérebro. É a beleza inteligente", afirma Glória Kalil, analista de moda.
A poucos quilômetros do prédio da Bienal, alguns dos ícones da arte contemporânea mundial -representantes da música e do teatro- reuniram-se no Carlton Arts, num antigo moinho da zona leste da cidade. Tamanha concentração de talentos fez com que se chamasse o encontro de "semana de arte moderníssima", numa referência à estética provocativa da Semana de Arte Moderna, em 1922.
As ruas estão cada vez piores e perigosas, ao mesmo tempo em que a cidade oferece notáveis musicais, entre eles "Os Miseráveis".
O crime alcançou níveis de guerra civil não-declarada, mas explode o número de concertos (há pelo menos um por dia só com orquestras públicas), de exposições e de peças teatrais.
O trânsito está cada vez mais infernal, mas prospera a estética publicitária -goste-se ou não, uma expressão de arte contemporânea. Os publicitários de São Paulo mantiveram o desempenho dos últimos anos e fizeram a festa no encontro publicitário de Cannes, ganhando alguns dos principais prêmios. Ganharam até mesmo em internet. No mês passado, o publicitário Washington Olivetto, da W/Brasil, arrebatou o Grand Prix no Clio Awards -uma espécie de campeonato mundial de futebol. Pela primeira vez, o prêmio não ficou com americanos e ingleses.
São Paulo vive a eterna poluição, e seus rios fedem, mas se conseguiu produzir um marco histórico em exposições de artes plásticas com a Mostra do Redescobrimento -o melhor painel da arte brasileira já realizado. Empreenderam-se reformas como a que resultou na criação da Sala São Paulo, hoje destinada a concertos, e a da Pinacoteca do Estado, que, certamente, entram na história da arquitetura brasileira.
Sei que, neste momento, marcado pelo baixo-astral, pouca gente está disposta a ver perspectivas positivas de futuro, o que se nota, entre outras coisas, pelo desencanto com a prefeita recém-eleita.
Mas o fato é que a cidade desenvolve vocações -da moda à publicidade, passando pelo teatro, pela internet e pela hotelaria- e constrói, no meio do caos, uma cidade contemporânea, conectada com o que se produz de mais sofisticado no planeta.
Impossível entender São Paulo sem levar em conta essa combinação diária de deterioração urbana com riqueza humana -tão visível na semana passada, com seus exemplos de inteligência e de barbárie. É o que faz as pessoas brilharem mesmo no escuro.
PS -Leitores reclamavam de que minha visão de São Paulo era deturpada porque eu a via de Manhattan, onde morava. Agora, porque vivo na Vila Madalena, pensam que a vejo como uma combinação de metrópole com cidade do interior. Errado: apesar de toda essa crise, a cidade está ficando e vai ficar cada vez mais interessante. Até porque toda essa criatividade felizmente depende pouco -muito pouco- do poder público e muito das iniciativas individuais, distantes dos palácios. Como o comportamento da população está mostrando nesta crise de energia, o governo faz o apagão, e a sociedade dá a solução.
E-mail - gdimen@uol.com.br



Texto Anterior: Asma: Entidade quer incentivar paciente a entender e prevenir doença
Próximo Texto: Massacre no Carandiru: Defesa vai pedir anulação de julgamento
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.