|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GILBERTO DIMENSTEIN
São Paulo brilha no escuro
Pesquisa do Datafolha publicada hoje mostra uma
queda no prestígio da prefeita
Marta Suplicy -numa velocidade surpreendente. Em menos de
três meses, o índice de "ruim" e
"péssimo" na avaliação de seu desempenho pela população pulou
de 16% para 42% -coincidentemente, é hoje igual ao índice do
presidente Fernando Henrique
Cardoso, já em fim de governo e
desgastado até a alma pelo racionamento de energia.
Além do desgaste provocado pela decisão da prefeita de conceder
aumento de tarifa às empresas de
ônibus e pelas suspeitas nos contratos com empresas de limpeza
urbana, certamente pesaram em
sua avaliação o clima geral do
país, marcado pelo baixo-astral
provocado pela escassez de energia, e o ambiente, ainda mais soturno, da cidade de São Paulo.
Na semana em que foi feita a
pesquisa, a cidade viveu cenas de
caos explícito.
Com aspecto sombrio em decorrência do racionamento de energia, acrescentado de frio e chuva,
São Paulo foi acometida de uma
greve de metroviários que produziu mais recordes de congestionamento. Assaltantes aproveitaram
a lentidão ainda maior do trânsito para atacar -sem constrangimento.
Escuridão, chuva, frio e engarrafamentos, tudo isso mesclado à
violência reforçou a sensação de
ingovernabilidade e de feiúra crônica.
Mas a capacidade que tem a cidade de produzir, com igual intensidade, caos e beleza foi especialmente notável na semana
passada.
Contrastando com as trevas urbanas, ocorreu, no prédio da Bienal, localizado no parque Ibirapuera, um show de requintada
beleza. Estilistas brasileiros, desfilando seus figurinos na São Paulo
Fashion Week, atraíram o interesse mundial para o evento. "A
beleza de São Paulo é fabricada
pelo cérebro. É a beleza inteligente", afirma Glória Kalil, analista
de moda.
A poucos quilômetros do prédio
da Bienal, alguns dos ícones da
arte contemporânea mundial
-representantes da música e do
teatro- reuniram-se no Carlton
Arts, num antigo moinho da zona
leste da cidade. Tamanha concentração de talentos fez com que
se chamasse o encontro de "semana de arte moderníssima", numa
referência à estética provocativa
da Semana de Arte Moderna, em
1922.
As ruas estão cada vez piores e
perigosas, ao mesmo tempo em
que a cidade oferece notáveis musicais, entre eles "Os Miseráveis".
O crime alcançou níveis de
guerra civil não-declarada, mas
explode o número de concertos
(há pelo menos um por dia só com
orquestras públicas), de exposições e de peças teatrais.
O trânsito está cada vez mais
infernal, mas prospera a estética
publicitária -goste-se ou não,
uma expressão de arte contemporânea. Os publicitários de São
Paulo mantiveram o desempenho
dos últimos anos e fizeram a festa
no encontro publicitário de Cannes, ganhando alguns dos principais prêmios. Ganharam até mesmo em internet. No mês passado,
o publicitário Washington Olivetto, da W/Brasil, arrebatou o
Grand Prix no Clio Awards
-uma espécie de campeonato
mundial de futebol. Pela primeira
vez, o prêmio não ficou com americanos e ingleses.
São Paulo vive a eterna poluição, e seus rios fedem, mas se conseguiu produzir um marco histórico em exposições de artes plásticas com a Mostra do Redescobrimento -o melhor painel da arte
brasileira já realizado. Empreenderam-se reformas como a que
resultou na criação da Sala São
Paulo, hoje destinada a concertos,
e a da Pinacoteca do Estado, que,
certamente, entram na história
da arquitetura brasileira.
Sei que, neste momento, marcado pelo baixo-astral, pouca gente
está disposta a ver perspectivas
positivas de futuro, o que se nota,
entre outras coisas, pelo desencanto com a prefeita recém-eleita.
Mas o fato é que a cidade desenvolve vocações -da moda à publicidade, passando pelo teatro,
pela internet e pela hotelaria- e
constrói, no meio do caos, uma cidade contemporânea, conectada
com o que se produz de mais sofisticado no planeta.
Impossível entender São Paulo
sem levar em conta essa combinação diária de deterioração urbana com riqueza humana -tão
visível na semana passada, com
seus exemplos de inteligência e de
barbárie. É o que faz as pessoas
brilharem mesmo no escuro.
PS -Leitores reclamavam de
que minha visão de São Paulo era
deturpada porque eu a via de
Manhattan, onde morava. Agora,
porque vivo na Vila Madalena,
pensam que a vejo como uma
combinação de metrópole com cidade do interior. Errado: apesar
de toda essa crise, a cidade está ficando e vai ficar cada vez mais
interessante. Até porque toda essa
criatividade felizmente depende
pouco -muito pouco- do poder
público e muito das iniciativas individuais, distantes dos palácios.
Como o comportamento da população está mostrando nesta crise de energia, o governo faz o apagão, e a sociedade dá a solução.
E-mail - gdimen@uol.com.br
Texto Anterior: Asma: Entidade quer incentivar paciente a entender e prevenir doença Próximo Texto: Massacre no Carandiru: Defesa vai pedir anulação de julgamento Índice
|