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JOGATINA
Nos dois únicos ambulatórios públicos que cuidam do problema, maioria dos pacientes manifesta compulsão por bingo
Especialistas vêem aumento de viciados
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
A multiplicação de bingos pelo
país pode estar causando o recrudescimento de um mal tão danoso quanto a dependência química: o vício de jogar. O alerta é de
profissionais que pesquisam a
doença e a tratam clinicamente.
Ainda não existem levantamentos que mapeiem o transtorno
com base em amostras extensas
da população brasileira. Psicólogos e psiquiatras, entretanto,
apontam pelo menos três indícios
de que o distúrbio se alastra silenciosamente, à medida que as casas
de apostas proliferam:
* Nos dois únicos ambulatórios
públicos do Brasil que cuidam do
problema, ambos em São Paulo, a
maioria dos frequentadores manifesta compulsão por bingo, seja
o tradicional, seja o eletrônico.
Outros tipos de "diversão", como
o bicho, o videopôquer, os caça-níqueis, as corridas de cavalo e as
cartas, seduzem uma quantidade
bem menor de pacientes.
* Estudo realizado num daqueles ambulatórios -o da USP-
demonstra que a procura por tratamento para o jogo patológico
cresce no mesmo período em que
ocorre o "boom" dos bingos.
* O Jogadores Anônimos, grupo
que presta assistência a compulsivos, vivencia fenômeno idêntico.
Reúne sobretudo dependentes de
bingo e se expande conforme as
casas de apostas aumentam.
De acordo com os especialistas,
tais dados, se não permitem tirar
conclusões definitivas quanto à
gravidade da situação, evidenciam que há algo de perigoso no
ar. O país, advertem, corre o risco
de presenciar uma explosão do vício exatamente como aconteceu
em cidades norte-americanas onde os cassinos se disseminaram.
Defendem, assim, que o governo
encare o assunto com o rigor que
reserva para o cigarro e deveria
dedicar às bebidas alcoólicas.
"Várias pessoas simplesmente
não sabem que o bingo pode provocar dependência. Ainda o relacionam às singelas quermesses de
igreja", afirma o psiquiatra Hermano Tavares, fundador do Amjo
-o Ambulatório do Jogo Patológico e Outros Transtornos do Impulso, mantido pela USP. "Só que
as coisas mudaram. Os bingos viraram um tremendo negócio.
Preocupam-se com lucros, não
com a saúde pública."
"Prevenção", resume a psicóloga Maria Paula de Magalhães Oliveira. Ela, que já coordenou o
Ambulatório de Jogo Patológico
da Unifesp (Universidade Federal
de São Paulo), não reivindica o fechamento dos bingos. "A questão
é legalizá-los levando em conta as
ameaças que representam."
A psicóloga sustenta que as casas deveriam informar aos clientes qual a probabilidade de perdas
e ganhos ali. "Já o governo deveria
promover campanhas educativas
sobre o vício e limitar a abertura
de bingos. É absurdo que uma
mesma avenida concentre dois ou
três pontos de jogo."
O debate vem à tona justamente
quando as casas se encontram
sem regulamentação específica.
No último dia 31 de dezembro, expiraram as licenças de funcionamento emitidas pela Caixa Econômica Federal. Como a legislação que abordava o tema também
deixou de vigorar, o setor mergulhou em um "vácuo jurídico". Espera, agora, a votação de uma nova lei no Congresso.
Promotores consideram que,
devido ao "vácuo", as casas se tornaram clandestinas e têm de cerrar as portas -inclusive em nome do combate à compulsão por
jogo. Mas a Associação Brasileira
de Bingos (Abrabin) pensa diferente. Argumenta que não há leis
nem para normatizar nem para
vetar a atividade. E classifica de
descabida a discussão sobre vício.
Graças a liminares, as casas continuam abertas.
O jogo patológico é uma doença
reconhecida pela Organização
Mundial de Saúde desde 1992.
Quem sofre do mal não resiste à
tentação de jogar -e, quando está jogando, não consegue parar,
mesmo depois de perder muito.
"A fissura do jogador compulsivo
ultrapassa a do cocainômano por
cocaína", compara Daniel Fuentes, neuropsicólogo do Amjo.
Em razão da ruína financeira,
uma parcela significativa dos dependentes pratica atos ilícitos na
esperança de obter dinheiro. Outros cogitam o suicídio.
Pesquisas canadenses revelam
que, quanto maior a oferta de jogos numa sociedade, maior a incidência do distúrbio. "É que a
doença se desenvolve apenas em
indivíduos propensos", explica
Hermano Tavares. "Se tais indivíduos não travarem contato com o
jogo, podem nunca acusá-la."
Nos EUA, na Inglaterra e na
Austrália, estima-se que o vício
atinja entre 1% e 4% da população
-taxa superior às da esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva.
O diagnóstico do transtorno
apóia-se, geralmente, em dez critérios definidos pela Associação
Norte-Americana de Psiquiatria.
Hoje não se dispõe de remédios
contra o problema. "O tratamento é psicoterápico, com resultados
satisfatórios", diz Tavares. "Os
pacientes aprendem a se controlar e permanecem longe do jogo."
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