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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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JOGATINA

Nos dois únicos ambulatórios públicos que cuidam do problema, maioria dos pacientes manifesta compulsão por bingo

Especialistas vêem aumento de viciados

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

A multiplicação de bingos pelo país pode estar causando o recrudescimento de um mal tão danoso quanto a dependência química: o vício de jogar. O alerta é de profissionais que pesquisam a doença e a tratam clinicamente.
Ainda não existem levantamentos que mapeiem o transtorno com base em amostras extensas da população brasileira. Psicólogos e psiquiatras, entretanto, apontam pelo menos três indícios de que o distúrbio se alastra silenciosamente, à medida que as casas de apostas proliferam:
* Nos dois únicos ambulatórios públicos do Brasil que cuidam do problema, ambos em São Paulo, a maioria dos frequentadores manifesta compulsão por bingo, seja o tradicional, seja o eletrônico. Outros tipos de "diversão", como o bicho, o videopôquer, os caça-níqueis, as corridas de cavalo e as cartas, seduzem uma quantidade bem menor de pacientes.
* Estudo realizado num daqueles ambulatórios -o da USP- demonstra que a procura por tratamento para o jogo patológico cresce no mesmo período em que ocorre o "boom" dos bingos.
* O Jogadores Anônimos, grupo que presta assistência a compulsivos, vivencia fenômeno idêntico. Reúne sobretudo dependentes de bingo e se expande conforme as casas de apostas aumentam.
De acordo com os especialistas, tais dados, se não permitem tirar conclusões definitivas quanto à gravidade da situação, evidenciam que há algo de perigoso no ar. O país, advertem, corre o risco de presenciar uma explosão do vício exatamente como aconteceu em cidades norte-americanas onde os cassinos se disseminaram. Defendem, assim, que o governo encare o assunto com o rigor que reserva para o cigarro e deveria dedicar às bebidas alcoólicas.
"Várias pessoas simplesmente não sabem que o bingo pode provocar dependência. Ainda o relacionam às singelas quermesses de igreja", afirma o psiquiatra Hermano Tavares, fundador do Amjo -o Ambulatório do Jogo Patológico e Outros Transtornos do Impulso, mantido pela USP. "Só que as coisas mudaram. Os bingos viraram um tremendo negócio. Preocupam-se com lucros, não com a saúde pública."
"Prevenção", resume a psicóloga Maria Paula de Magalhães Oliveira. Ela, que já coordenou o Ambulatório de Jogo Patológico da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), não reivindica o fechamento dos bingos. "A questão é legalizá-los levando em conta as ameaças que representam."
A psicóloga sustenta que as casas deveriam informar aos clientes qual a probabilidade de perdas e ganhos ali. "Já o governo deveria promover campanhas educativas sobre o vício e limitar a abertura de bingos. É absurdo que uma mesma avenida concentre dois ou três pontos de jogo."
O debate vem à tona justamente quando as casas se encontram sem regulamentação específica. No último dia 31 de dezembro, expiraram as licenças de funcionamento emitidas pela Caixa Econômica Federal. Como a legislação que abordava o tema também deixou de vigorar, o setor mergulhou em um "vácuo jurídico". Espera, agora, a votação de uma nova lei no Congresso.
Promotores consideram que, devido ao "vácuo", as casas se tornaram clandestinas e têm de cerrar as portas -inclusive em nome do combate à compulsão por jogo. Mas a Associação Brasileira de Bingos (Abrabin) pensa diferente. Argumenta que não há leis nem para normatizar nem para vetar a atividade. E classifica de descabida a discussão sobre vício. Graças a liminares, as casas continuam abertas.
O jogo patológico é uma doença reconhecida pela Organização Mundial de Saúde desde 1992. Quem sofre do mal não resiste à tentação de jogar -e, quando está jogando, não consegue parar, mesmo depois de perder muito. "A fissura do jogador compulsivo ultrapassa a do cocainômano por cocaína", compara Daniel Fuentes, neuropsicólogo do Amjo.
Em razão da ruína financeira, uma parcela significativa dos dependentes pratica atos ilícitos na esperança de obter dinheiro. Outros cogitam o suicídio.
Pesquisas canadenses revelam que, quanto maior a oferta de jogos numa sociedade, maior a incidência do distúrbio. "É que a doença se desenvolve apenas em indivíduos propensos", explica Hermano Tavares. "Se tais indivíduos não travarem contato com o jogo, podem nunca acusá-la."
Nos EUA, na Inglaterra e na Austrália, estima-se que o vício atinja entre 1% e 4% da população -taxa superior às da esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva. O diagnóstico do transtorno apóia-se, geralmente, em dez critérios definidos pela Associação Norte-Americana de Psiquiatria.
Hoje não se dispõe de remédios contra o problema. "O tratamento é psicoterápico, com resultados satisfatórios", diz Tavares. "Os pacientes aprendem a se controlar e permanecem longe do jogo."


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