São Paulo, segunda-feira, 02 de novembro de 2009

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MOACYR SCLIAR

Os mortos e seus mistérios


Isso, ela sabe, a atormentará para sempre. Até que a morte a separe de sua dúvida e a leve à verdade


Cerca de 2 milhões de pessoas são esperadas hoje, no Dia de Finados, nos cemitérios de São Paulo.
Folha Online

REMIÃO era o que se costuma chamar de um lobo solitário. Um homem calado, arredio, hostil mesmo. Tinha emprego -era vigilante noturno de cemitério-, mas não tinha amigos nem parentes com os quais convivesse.
Mas Remião tinha esposa. Uma mulher chamada Margarida, que era exatamente o contrário dele: uma pessoa boa, alegre, afetiva, que vivia sempre rodeada de amigos e de parentes.
Aconteceu que, num Dia de Finados, Margarida foi ao cemitério, muito cedo, e encontrou Remião, que estava largando o serviço. Ele olhou-a e disse: "Gostei de você. Quer casar comigo?". "Quero", disse ela.
Os amigos e familiares ficaram consternados. Esse cara vai arruinar sua vida, diziam-lhe, ele é um bicho do mato, você nunca mais poderá conviver com ninguém, só com os mortos dos quais ele cuida.
Ela sabia que essas ponderações tinham fundamento; mas estava apaixonada -aquela coisa de amor à primeira vista- e resolveu arriscar.
Casaram e viveram juntos durante 25 anos. Como todos tinham previsto, foi uma existência solitária, desolada. Ela trabalhava de dia, ele de noite. Nos fins de semana e nas férias, ficavam em casa.
Ele tinha uma ocupação muito estranha: colecionava e estudava epitáfios. Tinha mais de 20 mil, de seu cemitério e de muitos outros. Ela lia, costurava, olhava um pouco de tevê. Não tiveram filhos. Não conviviam com outras pessoas; aliás, ele não falava nem sequer com os vizinhos.
Um dia, de manhã, Remião não voltou para casa. Telefonaram do cemitério: ele tinha sido encontrado caído sobre um túmulo, morto.
Ela chorou muito, mas todos os que a conheciam ficaram contentes. "Graças a Deus, a sorte livrou você daquele cara", diziam, "e agora você poderá recomeçar sua vida, não é tarde para isso". O fato, porém, é que Margarida não podia esquecer o falecido.
Continuou morando na mesma casa e todas as noites lia os epitáfios que Remião tinha colecionado: pensava até em fazer um livro com aquele material.
E, quando chegava o Dia de Finados, corria para o cemitério com um ramo de flores. Era a primeira a chegar e, obviamente, a única a visitar aquele túmulo. Ficava horas, ali, chorando baixinho. As pessoas até ficavam impressionadas.
No último Dia de Finados, algo surpreendente ocorreu. Quando Margarida chegou ao cemitério, já havia um ramo de flores, belas flores, sobre o túmulo de Remião. Quem as tinha colocado ali? Ela perguntou ao zelador, perguntou a outras pessoas. Ninguém sabia.
Essa será, daqui por diante, uma dúvida crucial para Margarida: quem pôs as flores sobre o túmulo de Remião? Claro, pode ter sido um engano, o resultado de alguma visita apressada.
Mas é outra coisa que Margarida imagina. Ela vê uma mulher, uma bela mulher, vestida de preto, chorando e colocando o buquê ali. Pergunta: quem é essa mulher? O que a ligava a Remião? Como identificá-la, entre os milhares, os milhões, que nos Finados vão ao cemitério?
Para essa indagação Margarida não tem resposta. E isso, ela sabe, a atormentará para sempre. Até que a morte a separe de sua dúvida e a leve à verdade. Os mortos sabem de coisas que os vivos desconhecem.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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