São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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SEICHO-NO-IÊ
Sem-terra fazem Elizabeth, 27, rezar

da Reportagem Local

Cidade pequena. Cachoeiras, montanhas, pasto. Um cenário acima de qualquer suspeita, mas que custou à juíza Elizabeth Kazuko Ashikawa, 27, momentos de muita tensão.
Tudo aconteceu entre outubro e novembro. Elizabeth acabara de tomar posse como titular da 2ª Vara de Itararé (a 340 km de SP), quando um grupo de 600 sem-terra ocupou uma fazenda da região, a Rio Verde.
O fato atraiu jornais e TVs principalmente porque o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) considerou a propriedade produtiva e porque os invasores, armados com coquetéis molotov, roubaram o mobiliário da casa-sede, arrancaram portas e janelas, destruíram o telhado, picharam as paredes, defecaram nos cômodos e mataram animais.
Coube à juíza determinar a reintegração de posse pelos donos da Rio Verde. Ou melhor: exigir que os ocupantes deixassem a área, se necessário sob força policial.
"O clima entre as partes estava bastante nervoso", recorda-se. "Os sem-terra alegavam não saber para onde ir e pediam tempo. Os donos queriam que a Justiça se apressasse. E a Tropa de Choque da Polícia Militar aguardava ordens para agir."
Na noite que antecedeu a ação da PM, Elizabeth, angustiada, fez algo que quase não faz: rezou. "Acredito em Deus, mas não pertenço a nenhuma religião."
Mesmo assim, naquela noite, lembrou que sua mãe lhe dera um livrinho de orações da doutrina oriental seicho-no-iê. Leu-o durante uma hora, em voz alta, com o pensamento voltado para o dia seguinte. A desocupação acabou ocorrendo de maneira pacífica.

Incêndio
Curiosamente, alguns meses antes, quando atuava como titular em Ilhabela (litoral paulista), Elizabeth também se enredou num caso delicado, que não teve tanta repercussão, apesar de lhe render sustos de filme policial.
Mal completara a primeira semana de trabalho na cidade, se defrontou com um misterioso incêndio. De madrugada, alguém invadiu o fórum e colocou fogo em processos criminais. "Foi para me intimidar", afirma a juíza -que, no entanto, não dá mais detalhes sobre o caso. "Sigilo profissional", justifica.
Adianta, apenas, que na Justiça local corre uma série de "ações polêmicas", envolvendo disputas de terra e abuso de autoridade. Também informa que a sindicância e o inquérito policial abertos para apurar o episódio não conseguiram revelar nada.
"Nunca imaginei que pudesse enfrentar uma situação assim logo no começo da carreira. Fiquei preocupada, claro, mas não com medo. Procurei me concentrar em minhas obrigações e seguir adiante. O saldo acabou sendo positivo, porque ganhei experiência."
Ressabiada, durante certo tempo, a juíza morou apenas em hotéis e evitava permanecer sozinha no fórum.

Pressões
Formada há cinco anos, Elizabeth diz que raramente se sente desrespeitada por ser jovem.
"Às vezes, nas audiências, há advogados que tentam se impor com pressões. Levantam a voz, procuram demonstrar maior conhecimento que o meu ou ameaçam entrar com uma representação contra mim na corregedoria. Como tenho pouca idade, pensam que me amedrontam. Mas não funciona. Já aprendi que é tudo teatro."
Solteira, Elizabeth mora sozinha em uma casa alugada, de três quartos. Nas poucas horas vagas, quando tira o tailleur e os sapatos sociais, pratica esportes que o senso comum dificilmente atribuiria a um juiz: trekking, mergulho e alpinismo.
(AA)



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