São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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ARQUIVO X
"Vozes do além" encontram Carina, 26, em Mirandópolis

da Reportagem Local

Uma armadilha do destino. É assim, com uma expressão folhetinesca, que Carina Bandeira Margarido, 26, define o que lhe ocorreu em julho, apenas oito meses depois de virar juíza.
À época, trabalhava como substituta na comarca de Mauá (a 29 km de SP) e teve de julgar um jovem que estava preso sob a acusação de narcotráfico. "Existiam indícios de que cometera o crime, mas faltavam provas robustas para condená-lo", conta.
Mergulhada em dúvidas, chegou a redigir duas sentenças: uma absolvia o rapaz, a outra o mantinha preso. "Guardei os textos no computador e, toda hora, os reexaminava. Dispunha de cinco dias para dar a decisão, só que estourei o prazo em quase duas semanas."
Acabou optando pela absolvição, e o rapaz deixou a cadeia. "Segui o preceito de que, na dúvida, deve-se agir em favor do réu."
Um dia depois, mal a juíza entrou no fórum, um funcionário a chamou: "Doutora, a senhora absolveu o rapaz e, sem querer, assinou a sentença de morte dele".
Carina soube, então, que o jovem resolvera comemorar a liberdade em uma favela. Foi baleado assim que saiu da festa e morreu.
"Provavelmente, houve um acerto de contas entre traficantes. Claro que aquilo me abalou. Não conseguia parar de pensar que, se tivesse decidido pela condenação, talvez o rapaz continuasse vivo."
Quando "esfriou a cabeça", entendeu que fizera "o certo". "Cumpri meu papel e tomei a decisão com base na lei. Não podia prever o que aconteceu depois."
Hoje, Carina atua como titular na 2ª Vara de Mirandópolis (605 km de SP) e está às voltas com um episódio sombrio, que lembra os do seriado "Arquivo X".
Em um período de seis meses, quatro pessoas de uma família de classe média morreram numa mesma casa da cidade. Eram a avó, o tio, a tia e a mãe de um estudante de 21 anos.
Quando a juíza chegou a Mirandópolis, três mortes já haviam acontecido, aparentemente por causas naturais. Pelas ruas, no entanto, cresciam boatos de que alguém estava eliminando a família.
Em novembro, numa sexta-feira 13, logo depois da quarta morte, Carina decretou a prisão temporária do estudante, a pedido da polícia local. "O delegado apresentou uma série de indícios que tornam o rapaz suspeito de matar a mãe asfixiada", explica a juíza.
De início, o jovem negou tudo. Mas, em dezembro, ainda preso, confessou não apenas o assassinato da mãe como o dos demais parentes, de acordo com a polícia. Alegou cumprir "uma missão", designada por "vozes do além".
"O caso não chega a me assustar, mas é desafiador", afirma Carina. "Se as suspeitas em torno do rapaz se confirmarem, irá se desvendar um mistério que, paradoxalmente, continuará encobrindo outro, impossível de a Justiça esclarecer: por que há seres humanos capazes de praticar crimes dessa natureza?" (AA)



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