São Paulo, segunda-feira, 03 de março de 2008 |
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MOACYR SCLIAR Esperando o Homem-Aranha
QUE O PAI ERA AUTORITÁRIO, isto ela sabia desde a infância. De família tradicional, implacável disciplinador (os empregados da empresa que administrava temiam-no, não ousavam levantar a voz em sua presença), submetera a filha única a rígidas regras de conduta. Que ela, no entanto, não aceitava: era uma adolescente rebelde, desafiava abertamente, e altivamente, a autoridade paterna. Tingia os cabelos de roxo, usava trapos, voltava para casa de madrugada, e aí era briga atrás de briga. O clímax do conflito ocorreu quando tentou fugir com o namorado.O pai foi buscá-la na casa de praia em que o casalzinho havia se refugiado. E anunciou: dali por diante seria linha dura. E foi, mesmo, linha dura. Linha dura, não; duríssima. Todas as proibições anteriores vigoravam, mais uma, que ele fez questão de salientar: a partir daquele momento a garota simplesmente não poderia mais sair de casa. Teria de ficar trancada em seu quarto, no luxuoso apartamento em que viviam, no centro da cidade. A mãe, tradicional mediadora de conflitos, tentou intervir, mas sem resultado. A garota ficou presa mesmo. Claro, com todo o conforto; tinha som, tinha tevê, tinha computador, tinha DVD. A empregada trazia-lhe refeições e ficava à sua disposição. Mas ela não podia sair do quarto. A reclusão era por período indeterminado. E ali ficou ela. Olhava pela janela daquele décimo andar e via, na avenida lá em baixo, rapazes e moças passando, abraçados, conversando, rindo. O que fazer? Gritar por socorro? De nada adiantaria. Afinal, se o carcereiro era o próprio pai, quem poderia libertá-la? Foi então que leu a notícia sobre o Homem-Aranha, que, para surpresa e entusiasmo de muitas pessoas, acabara de escalar um prédio ali perto. Isto deu-lhe uma nova esperança; um tanto absurda, mas esperança, de qualquer maneira: a esperança de que o Homem-Aranha resolvesse escalar o prédio em que ela era prisioneira. E aí, quando ele passasse pela janela, ela gritaria, no seu ótimo francês (passara seis meses em Paris): Au secour, Monsieur! Sauvez-moi! Ele a salvaria, claro, e a levaria em seus fortes braços até o solo, onde seriam saudados com aplausos pela multidão. Talvez até um romance nascesse daí. Bem, mas se isto acontecesse, a carreira dele estaria encerrada. Ela não poderia tolerar um namorado escalando prédios e olhando mulheres pela janela. De jeito nenhum. O Homem-Aranha pode ser poderoso e ágil, mas da implacável teia da Mulher-Aranha ninguém escapa. MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha Texto Anterior: Bioquímico americano acusa indústria do cigarro de ter ameaçado suas filhas Próximo Texto: Consumo: Sola de bota Dakota desmancha apesar do pouco uso, diz leitora Índice |
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