São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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MASSACRE NA BAIXADA

"Vivemos em uma guerra civil não-declarada", diz historiador

FABIO SCHIVARTCHE
DA REPORTAGEM LOCAL

Nos últimos quatro anos o historiador Luís Mir mergulhou no universo da violência brasileira. Passou noites na porta de prontos-socorros, organizou campanhas médicas e viu a morte de perto. No final de 2004 ele emergiu dessa realidade com um livro e uma certeza: "Vivemos em uma guerra civil não-declarada".
Em entrevista à Folha, o catarinense de 48 anos, autor de "Guerra Civil - Estado e Trauma", diz que a chacina ocorrida no Rio na quinta-feira passada é mais um ato bárbaro que revela a falência do Estado. Leia trechos abaixo:

Folha - O que é essa guerra civil?
Luís Mir -
É uma guerra civil no contexto da violência crônica contra as massas segregadas e marginalizadas. O Estado brasileiro, desde a época da colônia, nunca foi um agente pacificador. Sempre agiu com violência e repressão. Hoje o conflito econômico se agravou a tal ponto que os grupos segregados, sempre vistos como inimigos do Estado, estão questionando a distribuição de renda com as armas que eles têm.

Folha - Em 2003, o jornal inglês "The Independent" chamou o Rio de "a cidade da cocaína e da carnificina". O que o senhor acha?
Mir -
É muito pior do que aquilo. O Rio dormiu nos anos 50 como capital federal e acordou como um balneário. Perdeu 1,2 milhão de empregos de uma hora para a outra, não houve transição. Desde então a escalada dessa guerra foi absolutamente anunciada, não é novidade para ninguém. E vai piorar, pois estão brigando pelo bolo [da renda] à bala.

Folha - O que está por trás de crimes como a última chacina?
Mir -
A chacina é algo que foge à racionalidade. É um ato bárbaro, animalesco. Mas sua base reside na falência das instituições legais.

Folha - Como a violência pressiona o sistema público de saúde?
Mir -
A média de internação de um paciente politraumatizado é de 20 dias e uma UTI pode custar até R$ 5 mil por dia. O sistema não resiste, e não agüentaria em lugar nenhum do mundo. Poderíamos atender dez pacientes comuns para cada vítima de violência.

Folha - Quem é mais afetado: a vítima ou o promotor da violência?
Mir -
Todos. Temos hoje uma catástrofe humanitária na porta de entrada dos hospitais, com um número absurdo de pacientes traumatizados. A eles se somam os pacientes crônicos. São tantas pessoas que os médicos do pronto-socorro não têm como atender bem. O sistema está em colapso. Dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que o atendimento à violência no país custa R$ 19 bilhões por ano, o que representa 40% dos gastos totais com saúde no país.

Folha - No livro, o senhor diz que a guerra civil está modificando o perfil do médico brasileiro. Como?
Mir -
Temos poucos centros de atendimento exclusivo a traumas no Brasil e uma demanda gigante. O médico que sai da faculdade tem treinamento para atender traumas, mas, se trabalha na rede pública, vai acabar pegando um baleado na segunda-feira, um esfaqueado na terça-feira e por aí vai. Virou medicina de guerra.

Folha - Qual a repercussão no meio médico desse fenômeno?
Mir -
A pior possível: os médicos acabam saindo da rede pública. No Rio as pesquisas apontam para uma deserção de 20% a 40% da área de emergência.

Folha - Os programas governamentais de distribuição de renda são um bom caminho?
Mir -
Em tese. Mas hoje eles não chegam à ponta, se perdem na corrupção no meio do caminho.

Folha - Qual é a solução?
Mir -
O Estado deveria se desarmar contra a população marginalizada, que vive numa espécie de campo de concentração, isolada e sem perspectivas.


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