São Paulo, terça-feira, 04 de janeiro de 2005

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MARIA INÊS DOLCI

Chame o ladrão!

Imagine uma pessoa que seja assaltada, e de quem o ladrão leve a carteira com dinheiro e documentos. E que tenha dificuldade em convencer o delegado de polícia de que não entregou o dinheiro, mas sim, que foi roubada.
Parece absurdo? Pois o STJ disse isso, em julgamento de um correntista, que teve dinheiro sacado de sua conta. A 4ª Turma do STJ decidiu que quem deve provar que não é culpado por saques indevidos de sua conta é o consumidor. Isso desrespeita o Código de Defesa do Consumidor, que institui a inversão do ônus da prova, porque parte do princípio de que o consumidor é a parte vulnerável na relação de consumo. Isso significa que o consumidor não tem condição técnica de provar o que alega. Nesse caso, segundo o Código, em vez de o consumidor provar que foi lesado, o fornecedor é que deverá provar que não praticou dano ao consumidor.
A se continuar nesse caminho, em que a inversão do ônus da prova deixa de ser aplicada para favorecer à parte mais vulnerável na relação de consumo, é provável que as vítimas sejam condenadas, porque cometeram o crime de ser lesadas.
E isso com um argumento estapafúrdio, de que o consumidor lesado tem de provar que não forneceu sua senha e seu cartão a alguém para roubar seu próprio dinheiro. Trata-se de uma decisão que não considerou a segurança que deve ser oferecida, o avanço dos crimes pela Internet; dos mecanismos colocados criminosamente em equipamentos de auto-atendimento de bancos para clonar senhas e cartões.
É sabido que os bancos têm como identificar onde os saques foram feitos, o local, o dia, a hora. Então, com essa inexplicável decisão, tira-se um direito do correntista comum, para entregar, de bandeja, essa vitória judicial a quem já tem tudo, dos juros escorchantes às tarifas bancárias múltiplas. Ou, ainda, aos lucros que chegaram à casa do bilhão de reais, nos mais recentes balanços.
Não se pode afirmar que o Código de Defesa do Consumidor será revogado por decisões equivocadas, pois o Brasil tem fortes instituições, que resistiram em épocas muito duras. Mas o Código está em observação, em estado que inspira cuidados.
E mais. Em 2001, a Febraban entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, com o intuito de fazer com que as atividades bancárias, financeiras, de crédito e securitárias não sejam mais reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor. Que diz, em seu artigo 3º: "Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira (...) que desenvolve atividades de produção (...) ou prestação de serviços". A seguir, completa o parágrafo 2º: "Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária". Portanto os usuários são consumidores de serviços bancários e estão protegidos pelo CDC.
Será que um correntista é o lado mais forte em relação a um banco? Ou o Código de Defesa do Consumidor só vale se não reduzir uma mínima parcela dos lucros das instituições financeiras?
Tudo isso nos faz lembrar belíssima composição de Chico Buarque, dos anos 70, com o pseudônimo de Julinho da Adelaide, em parceria com Leonel Paiva: "Sonhei que tinha gente lá fora, batendo no portão, que aflição, era a dura, numa muito escura viatura, minha nossa, santa criatura, chame, chame, chame lá, chame o ladrão, chame o ladrão".
Precisa dizer mais?


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