São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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Envergonhados e sem rumo, eles ainda resistem

DA REPORTAGEM LOCAL

É uma conta perversa. De um lado, quanto se poderá receber com trabalho justo, cuja oferta é cada vez mais rara. De outro, os ganhos que se poderá auferir ilegalmente, deles descontados os riscos que se corre e as punições às quais se está sujeito.
A forma como pende essa balança -na qual se misturam ainda incontáveis valores pessoais e familiares- determina, muitas vezes, o ingresso ou não do cidadão na criminalidade.
"É por isso que há limite na ação policial. Porque a punição é apenas uma variável em uma conta maior", avalia o economista Clifford Young, do Uniemp.
"A melhoria na qualificação dos policiais poderá definir rapidamente outro limite", mais adiante, rebate Nancy Cardia, do NEV.
Longe da discussão acadêmica, a vida no limiar da resistência não é nada fácil. "Se não tivesse a cabeça no lugar, já tinha metido um revólver na cinta", afirma Vanderlei José de Lima, 30, desempregado há mais de quatro anos.
Nas palavras de Lima, ele está no "veneno puro". Casado, são os bicos como gesseiro que sustentam a casa. Hoje ele procura um trabalho. Qualquer trabalho. "É o que mais vem na cabeça [praticar um crime]. Mas, se com o nome limpo já está difícil, imagine com o nome sujo. Não tem jeito."
Para o psicanalista Jacob Pinheiro Goldberg, a forma como o drama do desemprego impacta a subjetividade do indivíduo é determinante para desencadear ou não a conduta criminógena. Haveria, nesse raciocínio, uma espécie de predisposição.
"Muitas vezes o sujeito passa a transgredir códigos de convivência porque se sente diminuído pela falta de ocupação", avalia.
Diminuído e envergonhado. É assim que se sente Adílson José da Silva, 20, que já trabalhou em quatro lugares diferentes, mas nunca teve a carteira assinada. Há três anos, está desempregado.
"O pior [do desemprego] é para namorar. Me sinto mal de nunca poder dar um presente", afirma.
Silva mora em Itaquera, no fundão da zona leste, com os pais, a avó e dois irmãos. Só cursou até o 2º ano do ensino médio. O que mais ouve nas entrevistas é que não tem qualificação suficiente.
"Quando bate o desânimo, penso em assaltar, traficar, qualquer coisa. Mas sempre tem alguém que chega com um conselho e me traz de volta à realidade", diz ele.

Sadomasoquistas
Goldberg tem uma teoria interessante para explicar a vontade de reação que assalta, vez ou outra, pessoas como o desempregado Silva. Para ele, a modernidade está riscando do mapa uma certa relação sadomasoquista que historicamente se estabeleceu entre pobres e ricos no país, fazendo com que a resposta à corriqueira injustiça social nem sempre se dê civilizadamente.
"O rico nos EUA é discreto, sabe da exigência da solidariedade social. Aqui, não. O rico brasileiro chega na fronteira do deboche, da humilhação", diz o psicanalista.
"Mas os pobres cada vez mais entendem seus direitos de cidadania. Ninguém mais quer esperar ganhar o reino dos céus para ser recompensado do sofrimento. A ascensão dos evangélicos legitimou de forma definitiva o direito do pobre de gerar riqueza. E as pessoas estão dispostas a conseguir seus direitos -pleiteando, reivindicando e exigindo, se necessário, violentamente."
Nesse contexto de reação, o desemprego e a renda apareceriam não como causa da violência, mas como catalisadores desse processo -pois afastariam ainda mais as pessoas de seus objetivos.
Para estancar esse círculo vicioso, os pesquisadores do Uniemp sugerem ações que visem: 1) retardar a entrada dos jovens no mercado de trabalho; 2) capacitá-los para, quando o fizerem, conseguirem disputar melhores postos; e 3) garantir a empregabilidade das pessoas com mais de 40 anos.
(SÍLVIA CORRÊA e PEDRO DIAS LEITE)


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