São Paulo, terça-feira, 04 de maio de 2010

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CECILIA GIANNETTI

A medida certa


Subaproveitada, a habilidade de encerrar uma questão pode se revelar a melhor estratégia de sobrevivência

A HABILIDADE de compreender quando encerrar uma questão é uma grande conquista. No mínimo, reflete boas maneiras de quem dela se beneficia. Em casos extremos, pode se revelar a melhor estratégia de sobrevivência ou a única opção adequada numa situação infeliz. Mas é coisa subaproveitada.
Se da habilidade de dar cabo de um assunto em tempo favorável eu mesma um dia tirei pouquíssimo ou nenhum proveito, disso não me orgulho. Hoje procuro não subestimar as oportunidades de bem-estar que essa perícia proporciona, e dela faço propaganda. Porque o Rio é grande, São Paulo é imensa, e mesmo uma cidade microscópica é vasta para quem não arrasta correntes.
Eu me lembrei da utilidade do conceito graças a uma amiga morena, de cabelos dourados farmaceuticamente (caso raro em que a química não convida à vulgaridade, mas ajuda a natureza), recém-liberta de uma relação estável. Chegasse o homem de bom ou mau humor, no meio da noite ou só na semana seguinte -ela estava. Embora, às vezes, o paradeiro dele fosse desconhecido -ela sempre estava. A isso eles chamavam estabilidade, não sem certa razão.
Pouco antes de deixar o apartamento em direção a sua nova solteirice, bem situada na boca dos 30 (faz 29 anos sob o signo de touro, a moça da cabeleira dourada), ela abraçou a chance de tomar esse caminho tão pacífico quanto desprezado pelos que preferem alongar-se em debates estéreis: de um só golpe, terminou. Sem dê-érre nem possibilidade de múltiplos falsos recomeços, coisa que costuma distender cadáveres de relacionamentos até despedaçá-los para além do luxo da reconstituição da mortualha em forma de amizade.
A parte demorosa e cansativamente reavaliada que os levara até ali, afinal, já havia acontecido. Bastava olhar para trás, para os últimos meses juntos, e reconhecer: não estava bom para ninguém. O que ela não entendeu, então, foi por que ele não podia perceber essa configuração imensamente favorável, a condição de fazerem um corte rápido e limpo, e aproveitá-la também.
"Do jeito que eu vejo, a conta já "tava" paga: o garçom já tinha passado o cartão na maquininha e até aquele canhoto azul tinha sumido, amassado dentro da minha bolsa. Para que ficar agora sentado à mesa, quebrando palitinhos e discutindo o preço do couvert?"
Ela quis dizer, creio eu, que todos os momentos não tão fantásticos ou francamente detestáveis da relação, quando os argumentos de um e de outro colidiram e produziram insatisfação para os dois lados, que todos os episódios nos quais sua história se mostrou arrastada, todas as vezes em que ela ou ele pensaram "Quero ir embora daqui" e esse "aqui" eram as trincheiras cavadas nos cômodos do apartamento, de onde passaram a observar aquele que se tornara o inimigo, todas essas coisas os isentavam de discutir o fim. Tinham sido a tradução plena do mesmo.
Acontece que, de repente, ele quis falar sobre sentimentos. Ali, na hora de ela tomar o táxi de vez. Como se o processo inteiro não tivesse cumprido o seu propósito de erodir e avacalhar os tais sentimentos que, quando ainda eram bons e fortes, até justificariam uma discussão. Como se ela já não tivesse entregado as chaves na noite anterior, e como se abrir mão das chaves não tivesse sido o resultado de uma decisão que haviam tomado precisamente porque suas vontades não combinavam mais. Então, naquele momento, ela só queria e só podia dizer a ele -nada.

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