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MOACYR SCLIAR
Benefícios (e problemas) do atum
Com minha velocidade de reação aumentada, bati nela com aquilo que estava a meu alcance, o atum
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Um livro compila as notícias mais bizarras da internet, selecionadas por Marcos
Barbará, 26. Confira: o jovem Nicholas
Vitalich, 24, foi detido após golpear sua
namorada repetidamente com um grande e gordo atum de dez quilos, depois de
uma áspera discussão. A agressão aconteceu do lado de fora de um supermercado, onde Vitalich tinha ido a fim de comprar vodca e guloseimas para acompanhar o peixe fresco.
Folhateen, 28 de maio
"MERITÍSSIMO AQUI estou,
diante deste tribunal,
numa triste e constrangedora situação. Eu sou réu,
meritíssimo. Eu, que nunca tive problemas com a lei, sou réu. Eu estou
sendo acusado, e por quem? Por minha namorada, pela garota que eu
sempre amei, que amo, e com quem
quero casar. Triste, meritíssimo.
Triste e humilhante. Aliás, é por isso
que resolvi, eu próprio, encarregar-me de minha defesa. Advogado nenhum seria capaz de transmitir a este tribunal meus sentimentos e minhas emoções. Só eu poderia fazê-lo.
E é o que farei agora, meritíssimo.
A queixa contra mim é bem clara:
minha namorada diz que eu a golpeei repetidamente com um atum
de dez quilos. Verdade. Aliás, para
ser exato, o atum pesava 11 quilos.
Durante a agressão caiu uma parte
da cauda, e isso diminuiu o peso do
peixe -mas não, obviamente, o peso
da acusação, que reconheço como
pertinente. Eu poderia alegar, em
minha defesa, que não estava inteiramente no meu normal. Como foi
aqui relatado, eu havia comprado
vodca para acompanhar a refeição
-dizem que atum com vodca é ótimo- e admito ter tomado um pouco
da bebida, meia garrafa, mais ou menos, o que pode ter influenciado no
meu estado de ânimo. Mas não vou
recorrer a esse atenuante. Eu bati na
minha namorada com um atum. Admito-o. Mas o fiz pelo bem dela. Porque, e isso não foi aqui relatado, ela
recusou o convite para o almoço que
eu prepararia em sua honra (era o
dia do seu aniversário). E recusou de
forma arrogante, dizendo que atum
não estava à altura dela, que merecia
no mínimo caviar importado.
Ora meritíssimo, isso é um absurdo. O atum é um peixe nutritivo e altamente recomendado. Como outros peixes de águas frias e profundas, é rico em ômega 3, uma substância que comprovadamente diminui o colesterol e protege o aparelho
circulatório. Dizem também que
atua no sistema nervoso, melhorando a concentração e a memória, incrementando as habilidades motoras, aumentando a velocidade de
reação. Por tudo isso eu sou fã de
atum. Foi com a melhor das intenções que me ofereci para preparar o
peixe assado. E o que recebo em troca? Desprezo. Humilhação. Não pude me conter, meritíssimo. Com minha velocidade de reação aumentada (talvez por causa do ômega 3) bati
nela com aquilo que estava a meu alcance, o atum. Infelizmente era um
atum. Se fosse uma sardinha, talvez
ela me perdoasse, mas o atum, reconheço, é um peixe grande, sólido.
Ela se sentiu agredida e agora aqui
estamos, no tribunal.
Mas quero, diante de todos, pedir
a ela perdão. Estou disposto a me penitenciar pelo erro que cometi. E já
sei até como fazê-lo: vou me tornar
pescador, meritíssimo. Vou sair sozinho num barco e vagar pelo vasto
oceano meditando sobre as fraquezas da condição humana, até me redimir. Não tomarei uma gota de
vodca, só água. E só me alimentarei
com qualquer peixe que pescar.
De preferência atum, meritíssimo.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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