São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2008

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WALTER CENEVIVA

Carta: 20 anos + 60 emendas


Após tantas emendas, quase três por ano, a Constituição ficou pior ou melhor? A resposta é firme: ficou pior

O TÍTULO É um exagero deliberado, pois até quinta-feira havia 56 emendas no corpo principal da Carta e no ato das disposições constitucionais propriamente transitórias. Nunca se sabe, porém, da versão atualizada sem ver o noticiário de cada dia. A Constituição, cujo vigésimo aniversário será festejado democraticamente com a eleição de amanhã, pode ser vista, depois de dois decênios, sob a dupla análise de seu texto original e da colcha de retalhos subseqüente, gerada pelas emendas, mesclando história e direito escrito.
Foi muito usada a imagem de que os constituintes de 1988 escreveram a Constituição de olhos voltados ao passado ditatorial, com suas violências contra o direito, sacrifício da liberdade, predomínio absoluto da vontade do poder dominante. Tudo se somou para a criação de normas que pudessem impedir a quebra do Estado democrático de Direito, afirmado logo no artigo 1º. Para esse fim, o constituinte optou por texto cheio de especificações.
Não gostei da solução e escrevi a respeito nesta coluna mais de uma vez, contrariando meu querido amigo Geraldo Ataliba, que optou pela solução afinal adotada e me gozava dizendo que jornalista não entende de Constituição. Ataliba há muito nos deixou, mas seu gênio esfuziante riria comigo ao saber que, no processo democrático, a Carta Magna foi transformada em composição não orgânica e de interpretação complicada. Mesmo assim, temos menos pobreza, mais ocupação do território e até vemos alguns muito ricos presos ou ameaçados de condenação. A Constituição cidadã de Ulysses Guimarães aí está, forte e democrática.
Para os operários do direito se pergunta: depois de tantas emendas, quase três por ano, a Constituição ficou pior ou melhor? A resposta, calcada na pura técnica, é firme: ficou pior. Sua interpretação é complicada. Quando nenhuma regra é definitiva, submetida a alterações constantes, o direito fica numa espécie de pingue-pongue de alternativas, sem saber onde vai parar o direito reclamado, na demora dos processos.
A pura técnica, porém, não resolve. Ajuda, mas não resolve. Dou um exemplo: para recorrer ao STF (Supremo Tribunal Federal), até pouco tempo atrás, a parte precisava satisfazer requisitos previstos no artigo 102. Antes de 2004, quando esse dispositivo sofreu mudança radical, os advogados orientavam suas petições num certo sentido. Após a mudança (emenda nº 45), conceitos novos (a "repercussão geral" deve ser lembrada) surgiram para permitir o recurso ao STF. O leigo que busca a justiça, no sentido verdadeiro de, tendo direito, o achar satisfeito, tem muita dificuldade para entender a complicação.
Na ordem econômica, as discussões intensas de hoje sobre a propriedade estrangeira de áreas rurais nasceram da distância entre o texto original de 88 e o de sete anos depois, ao ser revogado o artigo 171 pela emenda nº 6. Empresas estrangeiras aqui registradas passaram a adquirir áreas rurais. Isso ocorreu com centenas de milhares de hectares, o que não é bom.
Os exemplos são muitos, mas, em síntese, a opção entre a Constituição generalista e a específica deve torná-la menos detalhista, mas preservando o espírito nuclear que a norteou.


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