São Paulo, segunda-feira, 05 de fevereiro de 2007

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MOACYR SCLIAR

Apertem os cintos e rezem para não atrasar


Longe o tempo em que o vôo era coisa segura, pontual; isto pode ter acontecido na época de Santos Dumont


Hoje em dia, após apertar o cinto e colocar a cadeira na posição vertical, passageiros de avião podem estar sujeitos a discursos sobre greve" de controladores aéreos e "riscos de acidente" nas pistas de aeroportos. Vindo não de um vizinho de poltrona, mas do próprio piloto da aeronave. Um militar testemunhou e registrou um comunicado do comandante do vôo 8023 para justificar um atraso de cerca de 30 minutos no embarque para o último trecho da rota Buenos Aires-Guarulhos-Brasília. A fala improvisada, ao que indica o documento, causou mal-estar nos passageiros e uma mulher precisou de atendimento de paramédicos. Segundo o documento, o comandante disse em três idiomas que o atraso foi causado pela "greve de três meses dos controladores" e da "situação caótica de aeroportos". Depois, disse a passageiros que embarcaram em Guarulhos que havia "risco de acidente" e caos em Cumbica pois a pista de taxiamento estava em obras. Teria dito ainda que em Congonhas a situação é de insegurança e que deveria ser fechada porque causará um acidente. Depois pediu ajuda a Deus. Cotidiano

"PREZADOS passageiros, antes de colocar a poltrona na vertical e afivelar o cinto de segurança, peço que meditem sobre o que vou lhe dizer. Como é do conhecimento de todos, a situação nos aeroportos brasileiros é caótica, para dizer o mínimo. Longe vai o tempo em que o vôo era uma coisa segura, confortável, pontual; isto pode ter acontecido na época de Santos Dumont e dos dirigíveis. Hoje, infelizmente, a situação é outra, e imprevisível. Nunca sabemos o que vai acontecer, a que horas vamos sair, a que horas vamos chegar. Nunca sabemos quando vai ocorrer o chamado apagão aéreo. Viagem de avião virou loteria, com o prêmio acumulado para daqui a muitos e muitos anos.
Mas, vocês perguntarão, não há nada que se possa fazer?
Há.
Podemos rezar. Podemos pedir ajuda a Deus. Notem que para isso estamos numa posição privilegiada. Quando o avião levanta vôo, senhores passageiros, estamos a meio caminho entre a terra e o céu. Deixamos para trás a terra, com suas confusões, as brigas entre governo e controladores e coisas do gênero. Longe ficam as preocupações terrenas: estamos em plena ascensão. É verdade que, mesmo a dez mil metros de altura, continuamos distante do Céu com C maiúsculo, do verdadeiro Céu, lá onde os anjos entoam hosanas, lá onde está Deus. Deus não toma avião, Deus não conta milhas e Deus não amarga atrasos em aeroportos; mas Deus compreende nosso problema e, no alto, estamos em boa posição para falar com o Senhor. Por isso rezem, senhores passageiros. Rezem bastante e peçam a Deus que lhes ajude. Quem sabe Deus manda anjos para transportá-los pelos céus? Não é impossível. Claro, talvez o serviço de bordo não seja aquelas coisas, mas a nutrição espiritual compensará sobejamente o eventual déficit na nutrição material.
Rezem, por favor. Antes que atinjamos nossa velocidade de cruzeiro, rezem. Antes que iniciemos nosso procedimento de descida para pouso no aeroporto, rezem. E antes de desembarcar, rezem (sem esquecer, naturalmente, de verificar os pertences trazidos a bordo.) E rezem para que o comandante do próximo vôo não faça discurso algum."


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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