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MOACYR SCLIAR
Navegar é preciso
Soltou as amarras e fez-se ao mar. Levado pelas correntes e por ventos favoráveis logo se viu distante da costa
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Homem faz casa flutuante na baía de
Guanabara. Assim Luiz Fernando Barreto de Queiroz Bispo, 40 anos, construiu
uma casa de cerca de 10 m2 sobre as
águas do canal do Cunha, um dos pontos
mais poluídos da baía de Guanabara, no
Rio de Janeiro. Foi notificado por fiscais
da Serla (Superintendência Estadual de
Rios e Lagos), por "invasão com intenção
de ocupar águas públicas de domínio estadual" e precisa sair em uma semana.
A casa de alvenaria foi feita com isopor e
4.000 garrafas plásticas. O banheiro tem
privada e banheira. Não é a primeira vez
que Bispo chama a atenção. No Carnaval
de 2006, ele foi ver o desfile remando em
seu barco. Cotidiano
ELE USOU todos os argumentos
possíveis e imagináveis. Disse
que a sua casa tinha sido
construída com garrafas plásticas
recolhidas da água e que portanto fizera um trabalho de despoluição.
Sustentou que a casa poderia se
transformar numa atração turística
e até mostrou a notícia de jornal que
havia sido publicada a respeito. Salientou o caráter arrojado de seu
projeto, que poderia baratear a
construção popular. Nada disso funcionou. A intimação era clara: ou ele
removia a casa ou os fiscais o fariam,
jogando-a num depósito de lixo.
Ele se encheu de brios:
-Sou brasileiro e vou fazer aquilo
que revelou este país ao mundo:
navegarei. Porque, como todos sabem, navegar é preciso, intimar não
é preciso.
Dito e feito: soltou as amarras e
fez-se ao mar. Levado pelas correntes e por ventos favoráveis logo se
viu distante da costa.
Isso já faz vários dias, e até agora a
viagem tem ocorrido sem problemas. Ele tem em casa muita água e
algum alimento; além disso, hábil
pescador, completa a dieta com os
peixes que consegue fisgar.
Não sabe ainda qual o seu destino,
porque não tem mapa, nem bússola,
nem mesmo leme. Confia no acaso,
porque o acaso levou os grandes navegadores de outrora a descobrir
terras novas.
E é uma nova terra que ele quer
encontrar. Uma terra desconhecida,
de natureza pujante e habitantes
amáveis. Uma terra que descreverá
no diário de bordo que já está escrevendo. Já tem na cabeça as frases
que usará para "dar a notícia do
achamento desta terra nova, que se
agora nesta navegação achou".
Falará do momento em que avistou terra: "Primeiramente de um
grande monte, muito alto e redondo;
e de outras serras mais baixas ao sul
dele; e de terra chã, com grandes arvoredos". Falará dos habitantes: "A
feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e
bons narizes, bem feitos. Andam
nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa
de encobrir suas vergonhas do que
de mostrar a cara. Acerca disso são
de grande inocência. Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi
ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou
qualquer outro animal que esteja
acostumado ao viver do homem. E
não comem senão deste inhame, de
que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores
de si deitam. E com isto andam tais e
tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e
legumes comemos".
E concluirá, com otimismo: "A
terra em si é de muito bons ares,
frescos e temperados. Águas são
muitas; infinitas. Em tal maneira é
graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo". Ou seja: enquanto não aparecerem os fiscais,
ele será feliz, muito feliz.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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