São Paulo, segunda-feira, 05 de março de 2007

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MOACYR SCLIAR

Navegar é preciso


Soltou as amarras e fez-se ao mar. Levado pelas correntes e por ventos favoráveis logo se viu distante da costa

 Homem faz casa flutuante na baía de Guanabara. Assim Luiz Fernando Barreto de Queiroz Bispo, 40 anos, construiu uma casa de cerca de 10 m2 sobre as águas do canal do Cunha, um dos pontos mais poluídos da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Foi notificado por fiscais da Serla (Superintendência Estadual de Rios e Lagos), por "invasão com intenção de ocupar águas públicas de domínio estadual" e precisa sair em uma semana.
A casa de alvenaria foi feita com isopor e 4.000 garrafas plásticas. O banheiro tem privada e banheira. Não é a primeira vez que Bispo chama a atenção. No Carnaval de 2006, ele foi ver o desfile remando em seu barco. Cotidiano

ELE USOU todos os argumentos possíveis e imagináveis. Disse que a sua casa tinha sido construída com garrafas plásticas recolhidas da água e que portanto fizera um trabalho de despoluição.
Sustentou que a casa poderia se transformar numa atração turística e até mostrou a notícia de jornal que havia sido publicada a respeito. Salientou o caráter arrojado de seu projeto, que poderia baratear a construção popular. Nada disso funcionou. A intimação era clara: ou ele removia a casa ou os fiscais o fariam, jogando-a num depósito de lixo.
Ele se encheu de brios: -Sou brasileiro e vou fazer aquilo que revelou este país ao mundo: navegarei. Porque, como todos sabem, navegar é preciso, intimar não é preciso.
Dito e feito: soltou as amarras e fez-se ao mar. Levado pelas correntes e por ventos favoráveis logo se viu distante da costa.
Isso já faz vários dias, e até agora a viagem tem ocorrido sem problemas. Ele tem em casa muita água e algum alimento; além disso, hábil pescador, completa a dieta com os peixes que consegue fisgar.
Não sabe ainda qual o seu destino, porque não tem mapa, nem bússola, nem mesmo leme. Confia no acaso, porque o acaso levou os grandes navegadores de outrora a descobrir terras novas.
E é uma nova terra que ele quer encontrar. Uma terra desconhecida, de natureza pujante e habitantes amáveis. Uma terra que descreverá no diário de bordo que já está escrevendo. Já tem na cabeça as frases que usará para "dar a notícia do achamento desta terra nova, que se agora nesta navegação achou".
Falará do momento em que avistou terra: "Primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos". Falará dos habitantes: "A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos".
E concluirá, com otimismo: "A terra em si é de muito bons ares, frescos e temperados. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo". Ou seja: enquanto não aparecerem os fiscais, ele será feliz, muito feliz.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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