São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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GILBERTO DIMENSTEIN
Doença da esculhambação


Intoxicação é uma das principais causas de internação nos prontos-socorros das grandes cidades brasileiras.
Centralizando dados de 30 centros especializados em intoxicação, os arquivos da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, revelam que ano a ano cresce o número de vítimas.
Ali se detecta uma suave amostragem. De acordo com estimativas do Banco Mundial, haveria 12 mil vítimas por dia, matando 120 delas, em especial crianças que engoliram inadvertidamente doses excessivas de medicamentos, produtos de limpeza ou inseticidas.
Raras estatísticas revelam com tanta nitidez a esculhambação brasileira com a vida humana, num casamento da irresponsabilidade empresarial e omissão do poder público.


Desde o início da década de 90, tramitam no Congresso projetos de lei obrigando as empresas de medicamentos e produtos de limpeza a terem embalagens de segurança.
Embalagem de segurança é, há mais de uma década, cautela elementar nas nações civilizadas.
Qualquer indivíduo com um mínimo de sanidade sabe como é perigoso favorecer o contato de seres sem discernimento com produtos químicos.
Apesar da obviedade, não há previsão de aprovação de medidas mais duras de segurança aos produtos tóxicos.
"Chegamos ao descalabro em que são vendidas vitaminas nas quais as embalagens, sem nenhuma proteção especial, têm desenhos de histórias em quadrinhos", protesta Rosany Bochner, do Sistema Nacional de Informações Tóxico Farmacológicas (Sinitox), da Fundação Oswaldo Cruz.



As estatísticas da Fiocruz mostram que, de cada 100 vítimas, 33 não completaram quatro anos de idade.
"É o reino da insensatez", afirma o pediatra Antony Wong, responsável pelo Centro de Assistência Toxicológica da Universidade de São Paulo.
"Vivemos literalmente o salve-se-quem-puder", critica o médico sanitarista da Sociedade Brasileira de Vigilância dos Medicamentos (Sobravime) -sinal do salve-se-quem-puder, aliás, é para ele o fato de que existe toda uma legislação orientando a publicidade de remédios que nunca cumprida e nem sequer fiscalizada.



Antony Wong já se acostumou a ver crianças entrarem nos prontos-socorros contaminadas por soda cáustica, água sanitária, antidepressivos, desinfetantes, aspirinas, descongestionantes nasais e antigripais.
Ele testemunhou crianças que ingeriram esses remédios sofrerem parada respiratória e do coração.
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) analisou um descongestionante, vendido em versão para adultos e crianças.
Gravidade: se uma criança tomar a versão destinada aos adultos, corre risco de vida.
Alerta do Idec: as duas versões de embalagens são extremamente semelhantes.
"O risco se torna ainda maior", afirma o farmacêutico Rogério Renato Silva, do Idec.



Esses desastres, facilmente evitáveis, apenas reforçam a visão de que a impunidade é o mais grave problema político brasileiro.
E a mazela começa dentro de casa. No caso, nas prateleiras.



PS - Por acreditar que a impunidade é um das mais graves problemas nacionais, sou levado a afirmar que o governo Fernando Henrique acabou.
Pode até renascer no próximo mandato; mas, agora, está moralmente no chão.
O leitor habitual sabe que esta coluna tem, sempre que possível, mostrado os lados positivos da sociedade brasileira. Inclusive no plano federal, estimulando imbecilóides a classificarem tal postura de chapa-branca.
Continuo achando que a queda da inflação é um dos grandes fatos do século, por restaurar energia na sociedade brasileira.
Mas ao indicar Renan Calheiros para ministro, o presidente enterrou a imagem de um governo que tinha como uma das mais firmes bandeiras o resgate da cidadania.
Como todo político tem a obrigação de saber, não se brinca com símbolos. O Ministério da Justiça deveria ser o símbolo da batalha pelo resgate da cidadania contra a impunidade generalizada; assim como o Ministério da Fazenda simboliza a austeridade financeira.
Renan Calheiros fazia parte do esquema de delinquência que levou Fernando Collor à presidência; e só rompeu por ver aspirações pessoais bloqueadas. Está, agora, sob seu domínio da Polícia Federal à Secretaria Nacional de Direitos Humanos.
Talvez seja uma boa solução para se manter no poder, o que duvido. Mas, para um professor que sofreu o exílio, é uma péssima lição.
Será que vale a pena ganhar mais anos de mandato em troca de menos respeitabilidade?
É essa questão que ele deve se fazer ao transformar o Ministério da Justiça no pior do balcão de negócios.


E-mail: gdimen@uol.com.br



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