São Paulo, quinta-feira, 06 de abril de 2000


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INCULTA & BELA

Duas vírgulas que mudam tudo

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

Na semana passada, pedi a você que pensasse numa questão da Fuvest. A banca queria que o candidato apontasse a alternativa em que as vírgulas alterariam o sentido. A frase intrigante era esta: "A Terra não é evidentemente curva". Como vimos, adjuntos adverbiais curtos normalmente podem ser isolados por vírgula(s), o que em geral confere ênfase à expressão. Quando se escreve "Hoje, as dificuldades são outras" ou "As dificuldades, hoje, são outras", não se acerta nem mais nem menos do que quando se escreve "Hoje as dificuldades são outras" ou "As dificuldades hoje são outras". O que muda é a carga enfática que se dá ao advérbio "hoje", o que depende fundamentalmente da importância que se queira dar a ele. Lembre-se de que, quando o advérbio é intercalado, colocam-se duas vírgulas, ou nenhuma; uma só, jamais. Isso significa que não se deve escrever "As dificuldades hoje, são outras" ou "As dificuldades, hoje são outras". Nos jornais, a vírgula "solteira" é o erro de pontuação mais comum. Uma parte desses erros certamente ocorre por desconhecimento, mas o principal motivo do equívoco é o tresloucado ritmo de trabalho de uma redação. Quando o texto "estoura" (não cabe no espaço predeterminado), o redator corta, mas, na pressa, "esquece-se" de verificar como ficou a costura das partes. Moral da história: cabeça de sapo em corpo de boi. Disso surgem erros, sobretudo de pontuação e de concordância. Pontuar com expressões adverbiais nem sempre é tão simples como nos exemplos iniciais. No caso da frase da Fuvest, não basta decidir entre enfatizar ou não o advérbio "evidentemente". Sem vírgulas, esse advérbio modifica o adjetivo "curva". Afirma-se que a Terra é curva, mas esse caráter curvilíneo não é evidente. Com vírgulas ("A Terra não é, evidentemente, curva"), muda tudo. O advérbio deixa de se referir especificamente ao adjetivo "curva" e passa a referir-se ao verbo ou a toda a oração, enfim. Afirma-se que a Terra não é curva, e isso é evidente. A palavra "evidentemente" pode assumir aí papel de elemento de coesão dessa passagem com outra, anterior, da qual se deduzisse que, evidentemente, a Terra não é curva. Um filósofo certamente dirá que as possibilidades interpretativas da frase, nas suas várias versões, não estão esgotadas. E não estão mesmo. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

E-mail: inculta@uol.com.br



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