São Paulo, terça-feira, 06 de abril de 2010

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CECILIA GIANNETTI

Medo e delírio garantidos


Temos hoje mais jornais, revistas, rádios e canais de TV; e todo o tipo de doideira acontecendo ao mesmo tempo


EU PODERIA começar o texto com o pronome pessoal que vem cada vez mais definindo as décadas desde 1980, em seguida emendar aqui uma lista de remédios para dor que me receitaram quando operei o pé, no final do ano passado, apertando o gatilho num parágrafo longo com relativamente poucas pausas para respiração -como se todos esses cacoetes adaptados fossem capazes de emular juntos, no papel, um estilo de escrita único: o de Hunter S. Thompson. Claro, seria besteira tentar fazê-lo. Não dá pra reduzir a influências literárias e drogas sua fórmula inimitável.
Quando se matou, há cinco anos, Thompson talvez já tivesse superado o fato de que seu próprio estilo se tornara algo por demais já amalgamado à cultura de massa para que permanecesse relevante contra ela.
Em fevereiro de 2005, aos 67 anos, Thompson decidiu não olhar mais para a América nem para qualquer outro ponto do globo, não mais discutir os descaminhos apocalípticos do mundo, não apontar erros nem alternativas. Escapou do destino de escritor -que é seguir escrevendo- com um tiro na cabeça.
Autor de "Medo e Delírio em Las Vegas", Thompson foi o inventor e praticante solo do gonzo, gênero que radicalizou a tradição já bastante radical difundida por Tom Wolfe e Gay Talese, entre outros.
Em um texto do começo dos anos 00, chamado "The New Dumb" ("Os novos estúpidos"), cravou: "Medo e delírio garantidos. Abandone toda a esperança. Prepare-se para o estranho. Familiarize-se com o canibalismo". Afirmou ainda, em sua autobiografia (publicada no Brasil pela Companhia das Letras), "Reino do Medo", que todos os pesadelos de que tínhamos notícia parecerão pouco perto do que virá. Sua maior mania, disse, era a paixão; foi dela um escravo natural. Achava que as pessoas, quando o viam, "ficavam extremamente desconfortáveis com a ideia de que eu sou uma adolescente presa no corpo de um drogado de 65 anos de idade que já morreu 16 vezes. Dezesseis, todas documentadas. Eu já fui esmagado e espancado e eletrocutado e afogado e envenenado e esfaqueado e abatido a tiros e incinerado por minhas próprias bombas (...) tenho tido sorte."
Temos hoje mais jornais, revistas, rádios e canais de TV do que em 2005. Temos tudo isso e mais super conexão wi-fi, celulares e todo o tipo de doideira acontecendo ao mesmo tempo e muito rápido: barbárie, doenças, bombas, astronautas "twittando" do espaço, revoluções comportamentais por segundo -coisas demais para que se façam compreender descritas no esquema quadrado, com começo-meio-e-fim, do jornalismo comum. Com tudo o que filtra e edita nossa realidade, fazem falta, sim, os disparos de Hunter aos viciados em informação de 2010.
Em "What Lured Hemingway to Ketchum", sua investigação sobre o suicídio do autor de "O Sol também se Levanta", publicada em 1964, Hunter conclui que Ernest foi vítima do que intuíra como "a maneira que a América tinha de destruir seus melhores escritores": segundo Hemingway explicara em "As Verdes Colinas da África", "algo acontece com nossos autores quando atingem certa idade. Nós transformamos nossos escritores em coisas muito estranhas... Nós os destruímos de várias maneiras." Thompson acrescenta que "o próprio Hemingway parece nunca ter compreendido de que jeito estaria sendo destruído, então jamais compreendeu como evitá-lo". O mesmo pode, talvez, ter ocorrido com Thompson.

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