São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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DANUZA LEÃO

A inútil lucidez


E quanto mais o tempo passa, mais descrente você fica, porque percebe o que está acontecendo antes do outro

LUCIDEZ; mas afinal, o que significa exatamente essa palavra? Para certas definições, o dicionário não resolve -não completamente; é mais um problema de percepção, de compreensão, de sensibilidade, de lucidez mesmo. Uma pessoa lúcida é aquela que procura nunca enganar a si mesma, mesmo que a verdade lhe traga sofrimentos.
Ela consegue captar o que está se passando e se nega a ter qualquer tipo de ilusão. Se alguém faz um elogio, ela procura, antes de acreditar ou agradecer, saber se não há algum motivo para tanta gentileza, porque costuma haver sempre uma razão oculta para tudo que se fala. Como já disse alguém, "as palavras foram feitas para ocultar os pensamentos".
Grandes amizades, freqüentemente, acontecem por interesse. Vejamos: quantas vezes não se fica muito próximo de alguém porque esse alguém nos ouve, quando precisamos, com toda a paciência do mundo? Com paciência e com tempo -coisas raras nos dias de hoje.
E aquela amiga que tem uma casa de campo e com isso todos os fins de semana, aqueles em que não se tem absolutamente nada para fazer, estão garantidos? E aquele casal que convida você para o teatro e jantar fora depois, e até para ir junto numa viagem?
Para alguns, viajar só é apenas inconcebível.
Existem todos os tipos de interesse, que aliás ajudam muito a fortalecer um sentimento, seja ele de amizade ou até de amor. Falemos claramente, com toda a lucidez, de um deles: o dinheiro.
Amor verdadeiro, aquele de verdade, existe mesmo? Claro que sim.
Mas se o homem tiver condições de proporcionar certos confortos do tipo "o motorista te pega", que fica muito melhor, lá isso fica. Reconhecer isso é lucidez, mas será que adianta ser lúcida e constatar a perda de todas -ou quase todas- as ilusões?
Tudo bem, as ilusões existem e fazem parte da vida, mas quantas vezes você quebrou a cara porque se iludiu? Vamos lá, tenha a coragem de olhar para trás e ir lembrando.
Aquele cara -lembra?- que disse que te amava e fez com que você quase jogasse tudo para o alto acreditando no amor eterno. Foi honesta com o marido, contou tudo, e ele continuou -e continua- casado.
Se tivesse sido lúcida naquele momento, teria percebido que era tudo mentira e não teria sofrido tanto. E aquela sociedade que você fez, em que você e sua sócia iam ganhar rios de dinheiro e serem, as duas, donas do mundo? Você entrou com o dinheiro e ela com a experiência, e no final você ficou com a experiência, sem o dinheiro e sem a amiga, quem haveria de dizer; aliás, se dissessem, você não teria acreditado.
Mas tem pior: é quando uma pessoa de quem você gosta muito, e a quem daria a camisa do corpo, começa a te tratar melhor para conseguir alguma coisa a mais do que o estabelecido.
Ser mais carinhoso, mais gentil, mais adorável para levar alguma vantagem, isso não se faz. E quem tem a desvantagem de ser lúcida percebe e sofre.
Aliás, nem sofrer sofre mais, porque desde o primeiro momento já vê tudo. Os muito jovens têm uma grande vantagem: a falta total de lucidez, que só vem com o tempo. E quanto mais ele passa, mais descrente você fica, porque percebe o que está acontecendo antes mesmo do outro. Só acredita em tudo e se ilude quem ainda não conhece suficientemente a vida.
Quem é lúcido não se surpreende com as coisas que o ser humano é capaz de fazer -as mais grandiosas e também as mais baixas; porque, sendo tão lúcido, sabe que também é capaz de todas elas.

danuza.leao@uol.com.br


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