São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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INFÂNCIA
A 10 km do centro da cidade, meninos e meninas passam o dia enterrados em manguezal caçando seu sustento
"Criança-caranguejo" vive da lama no Rio

SERGIO TORRES
da Sucursal do Rio

A 10 km do centro do Rio, de barco, chega-se a um manguezal onde crianças e adolescentes passam o dia enterrados na lama, à procura de caranguejos.
Vivem em miséria quase absoluta, não frequentam colégios e nada conhecem além do mangue e da região paupérrima onde moram, em barracos e casebres. São cerca de 500 menores nessa situação.
O manguezal é parte da APA (Área de Proteção Ambiental) de Guapimirim, região de 14 mil hectares no fundo da baía de Guanabara, administrada pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Última área virgem na poluída baía, o manguezal tem na captura de caranguejos e na pesca artesanal suas únicas atividades econômicas.
A pesca costuma ser praticada por jovens já crescidos e adultos. A captura de caranguejos, na maioria das vezes, por crianças e adolescentes de até 16 anos.
Como Mariana da Conceição de Oliveira, 11, que, com o irmão Ricardo, 13, sai de casa no bairro de Vila Nova de Itambi (Itaboraí, município a 35 km do Rio), embarca em uma canoa e durante horas vasculha os lamaçais em busca dos caranguejos.
Para capturá-los, Mariana e Ricardo enfiam-se na lama até a cintura.
Além do desconforto, da imundície, da fome, do frio das últimas semanas e das garras dos caranguejos, enfrentam os maruins, insetos minúsculos e vorazes que deixam na pele marcas de picadas maiores que as de mosquitos.
Mariana conta que quer ser professora de crianças quando crescer, mas sabe que está cada vez mais difícil realizar seu sonho.
Apesar de matriculada na 1ª série de uma escola estadual no bairro, há bastante tempo a menina não vai à aula.
O irmão, "caçador de caranguejos" desde os 8 anos, não tem planos para o futuro.
"Não quero ser nada. Para quê?", pergunta ele, que, como a irmã, não tem ido à escola.
O "uniforme" de trabalho é sempre o mesmo: roupas velhas e rasgadas, descalços. Ricardo e Mariana, mesmo com bastante esforço, não têm conseguido mais do que dez caranguejos por dia.
Os animais são entregues à mãe, Maria José de Oliveira, 44, que vende a dúzia entre R$ 7 e R$ 10, dependendo da oferta e do tamanho dos caranguejos.
"Está ruim. Há dois meses está ruim. Os caranguejos têm vindo muito pequenos. Na semana passada, foi difícil. O caranguejo sumiu. Só arrumamos R$ 30. Passamos fome", disse Maria José, mãe de seis filhos com idades entre 2 anos e 23 anos, casada com o caranguejeiro Lourival, 49.
Colega dos filhos de Maria José, Jomar do Carmo Xavier, 15, vive enterrado nos lamaçais há pelo menos sete anos.
No período, ele fala, viu seis colegas morrerem na lama ou levados pela correnteza dos rios Macacu, Guapimirim e Guaraí, que descem da região serrana em direção à baía.
"Se ninguém vê quando você fica preso na lama, acabou. Quando a maré sobe, você morre afogado. A corrente também é um perigo. Ela aumenta de força de repente", disse Xavier.
O garoto nunca foi ao Rio, apesar de a sua casa, na borda do manguezal, distar menos de 40 km do centro da capital, por estradas asfaltadas e pela ponte Rio-Niterói.
"Queria ir ao Cristo Redentor, ao Maracanã e de ser empresário de qualquer tipo de fábrica", disse ele, que aprendeu o ofício de catar caranguejo com o seu padrasto, Sílvio da Silva.
A situação de Mariana, Ricardo e Xavier não comove ninguém que frequenta ou habita os manguezais.
Todos ali estão acostumados a conviver com o lixo, a pobreza e a miséria. Naquela região, a criança existe para ajudar na sobrevivência da família.
Não importa a idade ou o tipo de atividade que deve realizar para que essa ajuda se concretize.
"É triste. Eu preferia meus filhos na escola, mas a gente tem que comer. A realidade daqui é essa", afirma Maria José.


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