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São Paulo, quinta-feira, 06 de novembro de 2003

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SEGURANÇA SOB AMEAÇA

Segundo a família de Pedro Cunha, morto em um dos atentados, ele reclamava da falta de estrutura da PM e já não se orgulhava da profissão

Cabo assassinado escondia que era policial

AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

"Desde pequena, meu sonho era que meu pai fosse me buscar na escola fardado, com o carro da polícia, para eu mostrá-lo aos meus amigos", conta a estudante Grace, 16. Seu pai, porém, nunca realizava o pedido. Temia que o fato de ser policial pudesse colocar a família em perigo. Além disso, após 23 anos de corporação, já não sentia tanto orgulho da farda.
No último domingo, Grace teve que desistir do sonho. Seu pai, o cabo Pedro Cassiano da Cunha, 44, morreu em um ataque à base comunitária do Tremembé (zona norte de SP), onde trabalhava. Os ataques a bases e carros da polícia, desde domingo, também resultaram na morte do sargento Flávio Soares, que trabalhava na base do Parque Anhanguera. Outros seis policiais e dois guardas-civis ficaram feridos.
As ações são atribuídas à facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), como uma resposta dos criminosos às limitações impostas pelo RDD (Regime Disciplinar Diferenciado).
Para a família de Cunha, porém, as causas da morte do cabo superam o lado factual dos ataques. Elas estão ligadas à falta permanente de estrutura da polícia, como armas e automóveis, e -também- à insegurança e baixa auto-estima de muitos PMs.
Na véspera do ataque, a mulher de Cunha, Cirley, 39, o encontrou diante do computador, olhando um site com fotos de policiais que haviam morrido em serviço. Segundo ela, o marido sentia-se tão inseguro que, além de pedir à família que não comentasse que era policial, não queria nem mesmo que a mulher pendurasse o uniforme no varal. Tampouco saía de casa fardado.
"Quando meu marido entrou na corporação, era apaixonado pela polícia. Mas há alguns anos começou a dizer que não tinha mais como agir", lembra a mulher do cabo. "Ele chegou a me dizer que, se visse alguma coisa na rua, era melhor fingir que não tinha visto, porque eles não têm cobertura. E tudo é a polícia que mata, que é errada. O sistema foi tirando todo o orgulho dele."
Cunha não quis avançar na carreira militar, embora tenha até recebido uma medalha por boa conduta. Com 23 anos de corporação, só prestou concurso para cabo -uma posição acima da dos soldados. Segundo familiares, ele achava que o aumento salarial não compensava o aumento de responsabilidade do cargo.
Seu salário era de aproximadamente R$ 1.300. A família também se sustentava com as vendas de um armarinho na parte dianteira da casa. Ainda assim, tiveram que vender o carro no início do ano, além de realizar vários empréstimos, para conseguir manter as contar em dia.
As duas filhas do casal estudam em colégio estadual. A mais velha, Grace, chegou a estudar um ano na Escola da Polícia Militar, mas a família não teve condições financeiras de mantê-la na escola da própria corporação.
Cunha estava ansioso para se aposentar. Segundo a mulher, no próximo dia 26 ele entraria de férias, período após o qual já estaria aposentado. Seu plano era construir uma casa em Bertioga (litoral de São Paulo), para onde se mudaria com a família, em busca de uma vida mais saudável.
Há alguns meses, fez um check-up e, ao chegar em casa, disse à mulher que tinha uma notícia ruim. "Prepare-se", disse brincando. "O médico falou que eu vou viver até os cem anos."


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