São Paulo, sábado, 08 de março de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

WALTER CENEVIVA

Se Camões voltasse

Se o voto de Ayres Britto fosse um poema épico, Camões voltaria para cumprimentar seu sucessor

O PRIMEIRO DIA do debate no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança (nº 11.105/05) foi amostra de civilidade e cultura difícil de encontrar em qualquer país deste planeta. Foi discutida, "para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias" não aproveitadas no procedimento da reprodução assistida. Em resumo, qual o destino do embrião não utilizado? O artigo 5º mencionado foi acusado de inconstitucionalidade, ao permitir a utilização em pesquisa.
O núcleo da discussão se baseou na inviolabilidade da vida, afirmada pelo artigo 5º da Constituição. A súmula de todos os argumentos é impossível neste espaço, mas o cerne deles foi bem enunciado.
Se a vida é direito inviolável, dizem os que vêem inconstitucionalidade na lei nº 11.105, usar os embriões para outros fins, que não os da reprodução, corresponde a matar a vida que neles já existe. Afirmam os defensores da constitucionalidade da mesma lei (em cujo rol me incluo) que o embrião, enquanto não for transferido para o corpo da mulher, não é ser humano -de vida inviolável, segundo a Carta Magna. Nem mesmo nascituro.
O ministro Ayres Britto fez seu relatório, de exemplar clareza, cumprindo o dever de contar a seus pares e a todos do que se cuidava. A seguir, abriu-se o debate. O procurador-geral da República Antonio Fernando Barros e Silva Souza fez exposição metódica de sua contrariedade à aprovação do artigo 5º da lei.
Ives Gandra da Silva Martins deu aula luminosa sobre os fundamentos da posição sustentada em nome da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), mesmo negando a vertente religiosa, mas afirmando a inconstitucionalidade. José Antonio Dias Toffoli, advogado-geral da União, situou-se no campo oposto, assim como Leonardo Mundim, pelo Congresso Nacional.
Seguiram-se os "amici curiae". Essa expressão foi muito usada, mas é estranha até mesmo para muitos trabalhadores do direito. As cúrias eram segmentos, com origem religiosa ou política, pelos quais se dividia o povo romano. Por isso, a melhor tradução deve corresponder a "amigo do povo", no sentido de identificar os representantes de grupos sociais. Foram nessa condição os pronunciamentos de Oscar Vilhena Vieira e Luiz Roberto Barroso.
Cuidadosíssimo na vinculação de cada passo à Constituição, ao Código Civil e aos princípios fundamentais do Estado brasileiro, nominando e identificando cada citação, o voto do ministro Carlos Ayres Britto deu tratamento exaustivo ao tema. Em outros passos, ilustrou seu domínio do idioma, na elegância do estilo, até concluir pela constitucionalidade da lei nº 11.105.
Disse bem o ministro Celso de Mello antes do encerramento: tratou-se de voto histórico, antológico. A ministra Ellen Gracie, além do exercício primoroso da presidência, deu seu voto, concorde com o relator. Agora se aguarda a vista, pedida pelo ministro Carlos Alberto Direito, na normalidade do desenvolvimento processual.
Pensei em um modo de definir a qualidade do voto de Ayres Britto em poucas palavras. Daí me veio a idéia de dizer que, transformado o voto em um poema épico, Luiz Vaz de Camões voltaria de onde quer que se encontre para cumprimentar seu sucessor.


Texto Anterior: Padre mostra carteira da CNBB, dinheiro e bilhete de volta, mas é barrado em Madri
Próximo Texto: Livros Jurídicos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.