|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
WALTER CENEVIVA
Se Camões voltasse
Se o voto de Ayres Britto
fosse um poema épico, Camões voltaria para cumprimentar seu sucessor
O PRIMEIRO DIA do debate no
STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança (nº 11.105/05) foi amostra
de civilidade e cultura difícil de encontrar em qualquer país deste planeta. Foi discutida, "para fins de
pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias" não
aproveitadas no procedimento da
reprodução assistida. Em resumo,
qual o destino do embrião não utilizado? O artigo 5º mencionado foi
acusado de inconstitucionalidade,
ao permitir a utilização em pesquisa.
O núcleo da discussão se baseou
na inviolabilidade da vida, afirmada
pelo artigo 5º da Constituição. A súmula de todos os argumentos é impossível neste espaço, mas o cerne
deles foi bem enunciado.
Se a vida é direito inviolável, dizem os que vêem inconstitucionalidade na lei nº 11.105, usar os embriões para outros fins, que não os
da reprodução, corresponde a matar
a vida que neles já existe. Afirmam
os defensores da constitucionalidade da mesma lei (em cujo rol me incluo) que o embrião, enquanto não
for transferido para o corpo da mulher, não é ser humano -de vida inviolável, segundo a Carta Magna.
Nem mesmo nascituro.
O ministro Ayres Britto fez seu relatório, de exemplar clareza, cumprindo o dever de contar a seus pares e a todos do que se cuidava. A seguir, abriu-se o debate. O procurador-geral da República Antonio Fernando Barros e Silva Souza fez exposição metódica de sua contrariedade
à aprovação do artigo 5º da lei.
Ives Gandra da Silva Martins deu
aula luminosa sobre os fundamentos da posição sustentada em nome
da CNBB (Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil), mesmo negando a vertente religiosa, mas afirmando a inconstitucionalidade. José Antonio Dias Toffoli, advogado-geral da União, situou-se no campo
oposto, assim como Leonardo Mundim, pelo Congresso Nacional.
Seguiram-se os "amici curiae". Essa expressão foi muito usada, mas é
estranha até mesmo para muitos
trabalhadores do direito. As cúrias
eram segmentos, com origem religiosa ou política, pelos quais se dividia o povo romano. Por isso, a melhor tradução deve corresponder a
"amigo do povo", no sentido de
identificar os representantes de grupos sociais. Foram nessa condição
os pronunciamentos de Oscar Vilhena Vieira e Luiz Roberto Barroso.
Cuidadosíssimo na vinculação de
cada passo à Constituição, ao Código Civil e aos princípios fundamentais do Estado brasileiro, nominando e identificando cada citação, o voto do ministro Carlos Ayres Britto
deu tratamento exaustivo ao tema.
Em outros passos, ilustrou seu domínio do idioma, na elegância do estilo, até concluir pela constitucionalidade da lei nº 11.105.
Disse bem o ministro Celso de
Mello antes do encerramento: tratou-se de voto histórico, antológico.
A ministra Ellen Gracie, além do
exercício primoroso da presidência,
deu seu voto, concorde com o relator. Agora se aguarda a vista, pedida
pelo ministro Carlos Alberto Direito, na normalidade do desenvolvimento processual.
Pensei em um modo de definir a
qualidade do voto de Ayres Britto
em poucas palavras. Daí me veio a
idéia de dizer que, transformado o
voto em um poema épico, Luiz Vaz
de Camões voltaria de onde quer
que se encontre para cumprimentar
seu sucessor.
Texto Anterior: Padre mostra carteira da CNBB, dinheiro e bilhete de volta, mas é barrado em Madri Próximo Texto: Livros Jurídicos Índice
|