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São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2003

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MOACYR SCLIAR

Compromisso com o social

Cidade paga 10 mil euros por filho. Situada nos Apeninos, a sudeste de Nápoles, a cidade de Laviano corre o risco de sumir do mapa em razão da ausência de empregos, que leva os jovens a partir em busca de nova vida. No ano passado, nasceram apenas quatro bebês na cidade, cuja população é de 1.600 pessoas. Numa tentativa de mudar a tendência, o prefeito Rocco Falivena resolveu oferecer um abono de 10 mil euros (cerca de R$ 36 mil) para cada bebê nascido na cidade. Folha Mundo, 2.dez.2003

A leitura da notícia no jornal deu-lhe uma súbita inspiração. Pela primeira vez enxergava uma luz no fim do túnel. Pela primeira vez tinha a clara noção do que precisava fazer.
Recortou cuidadosamente a notícia, vestiu-se e saiu. Tinha um destino certo: ia até o viaduto próximo à sua casa. Era um local que costumava evitar, sobretudo à noite: aquilo era considerado um antro de marginais. Agora, porém, enfrentaria esse risco, enfrentaria qualquer risco. Porque tinha uma missão a cumprir e iria cumpri-la, custasse o que custasse.
Como esperava, o lugar estava cheio de gente. Homens, mulheres, crianças, muitas crianças. Todos maltrapilhos. Todos exalando um cheiro insuportável. O cheiro da miséria. As mulheres, várias delas grávidas, eram particularmente patéticas.
Criando coragem, ele se aproximou:
- Amigos, vim aqui falar com vocês. Tenho uma coisa muito importante para lhes dizer, portanto peço que prestem atenção.
Olhavam-no, em silêncio. Ele hesitou, intimidado, mas prosseguiu:
- Vocês não me conhecem, mas sou vizinho de vocês. Moro ali, naquele prédio. Da minha janela vejo vocês todos os dias. Vejo a pobreza em que vocês vivem. Há muito tempo eu queria fazer alguma coisa para ajudar vocês, mas não sabia exatamente que coisa era essa. Agora sei. Posso ensinar vocês a ganhar dinheiro. Um bom dinheiro.
Tirou do bolso o recorte:
- Deu no jornal: tem uma cidade italiana que oferece R$ 36 mil para cada bebê que nascer lá. É muito dinheiro. É mais do que vocês todos, juntos, já ganharam na vida. E esse dinheiro está ao alcance de vocês. Porque mulher grávida é o que não falta aqui. É só as mulheres irem para lá, darem à luz e faturar. Vocês vão me perguntar: como é que a gente faz para ir para a Itália? Sempre se pode dar um jeito. Eu conheço o capitão de um navio que vai seguido para Nápoles. Posso conseguir uma carona para vocês. E então? O que me dizem?
Não houve resposta.
- Pensem na proposta que eu fiz a vocês -continuou ele. - E, se quiserem, me mandem um recado pelo porteiro do meu prédio.
Despediu-se e voltou para causa. Exausto: o engajamento social pode ser uma coisa muito estafante.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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