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MOACYR SCLIAR
A vida na vaga
Atualmente sai do escritório, come alguma coisa e vai direto para o carro, esperar a hora de retornar ao trabalho
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Falta de vaga para o carro faz motorista
"madrugar" na Berrini. Trabalhadores da
região chegam até duas horas e meia antes
do horário de entrada para encontrar lugar para estacionar na rua. Além de escassas, vagas de estacionamento são caras
(até R$ 350); a região não tem metrô e
conta com poucas linhas de ônibus. Às 7h
já não há mais onde parar no meio-fio das
ruas entre a Berrini e a marginal Pinheiros. Às 9h30, muitos estacionamentos,
que não são nada baratos, estão lotados.
Às 10h30, só sobram vagas a mais de quatro quarteirões da avenida e do lado oposto ao da marginal, onde, segundo frequentadores, é comum o furto de veículos. "É
fácil ver gente dormindo aqui", afirma o
produtor Mário Marcos. Cotidiano, 2 de
março de 2009
NO COMEÇO ele tinha de chegar
de carro à Berrini duas horas
e meia antes do horário de expediente para conseguir estacionar.
Era um problema, sobretudo para
quem, como ele, não gostava de acordar cedo; mas, lutador que era, não
deixava se intimidar por aquilo. Chegava cedo, sim, e tratava de usar o
tempo da melhor maneira possível:
escutava rádio, lia jornal, e até escrevia -ficcionista frustrado tinha o
projeto de um grande romance e, aos
poucos, ia digitando no laptop uma e
outra cena.
Mas -e isso apesar da crise- a situação se agravou. Em breve, duas
horas e meia de antecedência não
eram suficientes. Ele aumentou-as
para quatro horas. Agora dormia menos ainda, mas, em compensação, ficava cada vez mais atualizado com as
notícias de rádio e de jornal. E, ah
sim, o romance ia crescendo.
A primeira parte já estava quase
pronta, e ele começava a projetar as
outras. Tinha de lutar contra o invencível sono, claro, mas a térmica com
café (e ele esvaziava-a toda) ajudava
um pouco.
Contudo, mais e mais carros entravam na luta por uma vaga. Ele começou a chegar seis horas antes do expediente. Era ainda noite fechada quando estacionava, mas, de novo, isso
não o perturbava; ao contrário, até
gostava do silêncio que então reinava
naquela artéria em outros horários
tão movimentada. Isso também mudou a sua rotina familiar, claro; depois de jantar com a mulher e os dois
filhos não ia para a cama: cochilava
umas horas na poltrona e seguia para
o carro.
Passava mais tempo no veículo,
mas isso só fazia aumentar seu universo cultural: além de rádio e jornais, lia revistas, livros diversos (estava pensando em fazer um mestrado)
e, logicamente, trabalhava no seu romance, cada vez maior.
E o problema do estacionamento
sempre crescendo. Chegou um momento em que ele chegava em casa,
jantava apressado, e, embarcando no
carro, retornava para a Berrini. Por
fim chegou à conclusão de que não
valia mais a pena a volta ao lar.
Atualmente sai do escritório, come
alguma coisa numa lanchonete, e vai
direto para o carro, esperar a hora de
retornar ao trabalho. A mulher e os
filhos é que vêm visitá-lo no veículo,
que se transformou assim numa espécie de lar.
Não, ele não se queixa. Vê algumas
vantagens na nova situação. Não
precisa dirigir mais, não se estressa
no trânsito, não gasta combustível.
É um homem cada vez mais culto,
uma verdadeira enciclopédia ambulante (quando deambula, claro). E
seu romance, que já está com mais
de mil laudas, tem tudo para ser
uma grande obra literária. O título,
ainda provisório (muitas coisas em
deambular
nossa existência são provisórias).
é "A vida na vaga".
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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