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INCULTA & BELA
"Tu te fostes de mim"
PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha
Fafá de Belém fez sucesso
com uma canção que dizia:
"Beira de mar, como um resto
de sol no mar, como a brisa
na preamar, tu te fostes de
mim". Tu te fostes? Ou foste?
Em língua, é inegável a existência de um processo chamado transferência. Quando
aprendemos na escola a conjugar os verbos, pomo-nos todos a repetir, quase mecanicamente, a sequência "eu, tu,
ele, nós, vós, eles". No primeiro grau, começamos conjugando verbos regulares, na sequência presente, pretérito,
futuro.
Mais tarde aprendemos que
há mais de um presente, mais
de um pretérito, mais de um
futuro. E continuamos na sequência "eu, tu...". Quando
conjugamos o bendito "tu",
sempre há um "s" no final:
"eu levo, tu levas"; "eu levava,
tu levavas"; "eu levara, tu levaras"; "eu levarei, tu levarás"; "eu levaria, tu levarias";
"que eu leve, que tu leves"; "se
eu levasse, se tu levasses";
"quando eu levar, quando tu
levares".
É aí que entra o tal processo
de transferência. Os tempos
verbais simples são nove. Em
oito deles (os oito que acabamos de conjugar), a segunda
pessoa do singular, ou seja, o
"tu", termina em "s". O único
tempo em que isso não ocorre
é o pretérito perfeito do indicativo: "eu falei, tu falaste";
"eu corri, tu correste"; "eu
permiti, tu permitiste". Então
são oito contra um.
Moral da história: por contaminação, as pessoas tendem
a colocar o "s" também na
segunda do singular desse
tempo. Surgem então formas
como a da canção que Fafá
cantava. Pelo aspecto gramatical, não é difícil supor que,
ao ouvir a lamúria ("tu te fostes"), o "ex" tenha suspirado
aliviado: "Já fui tarde".
Recentemente, o grupo Engenheiros do Hawaii deu sua
contribuição, na música "A
Promessa": "Tu me encontrastes de mãos vazias".
É preciso mostrar ao aluno o
processo que o leva a ter vontade de colocar o "s". Depois,
é preciso dizer que existe uma
norma e que, segundo essa
norma, esse "s" está errado.
Por fim, deve-se fazê-lo repetir à exaustão: tu quiseste, tu
ensinaste, tu beijaste...
Herivelto Martins e David
Nasser compuseram a bela
"Atiraste uma Pedra", com
todos os verbos conjugados
corretamente (feriste, quebraste etc.). Na tocante "O
que Tinha de Ser", música de
Tom Jobim e letra de Vinicius
de Moraes, a conjugação também é redonda: "Porque foste
na vida a última esperança";
"Porque tu me chegaste";
"Porque foste o que tinha de
ser". No antológico disco
Elis&Tom, Elis Regina interpreta essa canção sem escorregar nas formas verbais.
Na língua do dia-a-dia, o
pronome "tu" tem sido usado
em várias regiões do Brasil
com o verbo na terceira do
singular: "tu foi", "tu fez"; "tu
riu"; "tu abusou" etc. Mesmo
no Rio Grande do Sul, em que
esse processo é mais recente,
essa tendência parece irreversível, pelo menos entre os jovens. Na língua culta, porém,
devem-se manter os elementos que diferenciam a segunda
pessoa da terceira: "tu vais,
ele vai"; "tu foste, ele foi"; "tu
riste, ele riu".
Não custa lembrar que,
quando se acrescenta "s" a
"foste", "falaste", "trouxeste",
o que se faz é conjugar a segunda pessoa do plural: "vós
fostes, vós falastes, vós trouxestes". É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna
às quintas-feiras
E-mail: inculta@uol.com.br
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