São Paulo, quinta, 9 de abril de 1998

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INCULTA & BELA
"Tu te fostes de mim"

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

Fafá de Belém fez sucesso com uma canção que dizia: "Beira de mar, como um resto de sol no mar, como a brisa na preamar, tu te fostes de mim". Tu te fostes? Ou foste?
Em língua, é inegável a existência de um processo chamado transferência. Quando aprendemos na escola a conjugar os verbos, pomo-nos todos a repetir, quase mecanicamente, a sequência "eu, tu, ele, nós, vós, eles". No primeiro grau, começamos conjugando verbos regulares, na sequência presente, pretérito, futuro.
Mais tarde aprendemos que há mais de um presente, mais de um pretérito, mais de um futuro. E continuamos na sequência "eu, tu...". Quando conjugamos o bendito "tu", sempre há um "s" no final: "eu levo, tu levas"; "eu levava, tu levavas"; "eu levara, tu levaras"; "eu levarei, tu levarás"; "eu levaria, tu levarias"; "que eu leve, que tu leves"; "se eu levasse, se tu levasses"; "quando eu levar, quando tu levares".
É aí que entra o tal processo de transferência. Os tempos verbais simples são nove. Em oito deles (os oito que acabamos de conjugar), a segunda pessoa do singular, ou seja, o "tu", termina em "s". O único tempo em que isso não ocorre é o pretérito perfeito do indicativo: "eu falei, tu falaste"; "eu corri, tu correste"; "eu permiti, tu permitiste". Então são oito contra um.
Moral da história: por contaminação, as pessoas tendem a colocar o "s" também na segunda do singular desse tempo. Surgem então formas como a da canção que Fafá cantava. Pelo aspecto gramatical, não é difícil supor que, ao ouvir a lamúria ("tu te fostes"), o "ex" tenha suspirado aliviado: "Já fui tarde".
Recentemente, o grupo Engenheiros do Hawaii deu sua contribuição, na música "A Promessa": "Tu me encontrastes de mãos vazias".
É preciso mostrar ao aluno o processo que o leva a ter vontade de colocar o "s". Depois, é preciso dizer que existe uma norma e que, segundo essa norma, esse "s" está errado. Por fim, deve-se fazê-lo repetir à exaustão: tu quiseste, tu ensinaste, tu beijaste...
Herivelto Martins e David Nasser compuseram a bela "Atiraste uma Pedra", com todos os verbos conjugados corretamente (feriste, quebraste etc.). Na tocante "O que Tinha de Ser", música de Tom Jobim e letra de Vinicius de Moraes, a conjugação também é redonda: "Porque foste na vida a última esperança"; "Porque tu me chegaste"; "Porque foste o que tinha de ser". No antológico disco Elis&Tom, Elis Regina interpreta essa canção sem escorregar nas formas verbais.
Na língua do dia-a-dia, o pronome "tu" tem sido usado em várias regiões do Brasil com o verbo na terceira do singular: "tu foi", "tu fez"; "tu riu"; "tu abusou" etc. Mesmo no Rio Grande do Sul, em que esse processo é mais recente, essa tendência parece irreversível, pelo menos entre os jovens. Na língua culta, porém, devem-se manter os elementos que diferenciam a segunda pessoa da terceira: "tu vais, ele vai"; "tu foste, ele foi"; "tu riste, ele riu".
Não custa lembrar que, quando se acrescenta "s" a "foste", "falaste", "trouxeste", o que se faz é conjugar a segunda pessoa do plural: "vós fostes, vós falastes, vós trouxestes". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail: inculta@uol.com.br



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