São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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Poder paralelo ameaça e expulsa padre

DA REPORTAGEM LOCAL

Periferia de São Paulo. Manhã de sol. Oito homens armados entram em uma casa assistencial perto de uma boca de tráfico. Escolhem um morador de rua atendido ali. Batem. Batem. Chutam o rapaz magro, portador do vírus HIV, que não enxergava direito, que tinha dificuldade para andar.
Expulsam os funcionários, outros moradores de rua. Ajudam a fechar as portas, os portões. Deixam um recado: ""Avisa o padre que o traficante mandou fechar e quer falar com ele agora".
Padre Paulo (nome fictício) é um homem de estatura mediana, fala calma, com quase 20 anos de trabalho na periferia, que havia aberto a casa dez dias antes.
Tinha apoio de uma comunidade católica e queria dar aos atendidos comida e noções de higiene. O objetivo era resgatar os que, segundo as palavras dele, elegeram as ruas da cidade como lar.
A Folha deixa de publicar a região da capital onde ocorreram os fatos, no ano passado, e o nome do padre a pedido dele, por causa das ameaças que sofreu.
Não há registro oficial da história, porque a comunidade temeu represálias. Na semana passada, o padre rompeu o silêncio e contou com detalhes a conversa que teve com o traficante da região.
Após o ataque, à tarde, o recado chegou até o padre. Paulo ouviu na paróquia que não deveria ir.
Seguiu então de carro até a rua do encontro. Estava sozinho, de acordo com o aviso que havia recebido. Eram 17h.
Estacionou em frente a uma casa, fora da favela, onde havia um churrasco. Viu motos e carros novos, 30 pessoas bem vestidas, muita cerveja. Muitos pareciam estar armados, pelo volume embaixo das camisas.
""O padre chegou. Veio pedir benção ou nós é que temos de pedir benção?", recorda Paulo, sobre as piadinhas que ouviu.
O traficante apareceu depois, vestindo roupas esporte e cordão de ouro no pescoço. Na cintura, observou o padre, havia um volume que parecia ser uma arma. ""Vim conversar sobre a questão da casa, sobre o que aconteceu hoje. Podíamos estar negociando. Esse trabalho é importante", disse o padre. Conversaram na rua, em pé, rodeados pelos capangas.
""Não resta dúvida, padre. Seu trabalho é belíssimo. Parabéns. Só que na minha área, não. No meu pedaço, não. Não quero esse tipo de trabalho aqui", escutou.
O padre insistiu, defendeu o projeto e suas qualidades. ""Se o senhor quiser, a gente pode botar até dentro da favela. Vagabundo nenhum irá mexer com o senhor, porque eu garanto. Ajudo até o senhor a encontrar um lugar. Mas aqui não", afirmou o traficante, segundo o relato de Paulo.
Para o padre, a proposta não resolveria, pois moradores da favela e de rua seriam misturados, alterando a característica do projeto.
Quis saber então por que o traficante havia sido violento, agredindo um morador. ""Ele está todo quebrado", disse. ""Padre, preste bem atenção, aquilo não foi violência, foi um carinho para o senhor entender o aviso que eu estava dando."
A conversa durou mais de duas horas. Anoiteceu. Dois carros da PM passaram na esquina.
""Já pensou meus amigos chegando aqui, encontrando moradores de rua? Depois tem a questão da violência, vai que assaltam algum conhecido meu. Como é que vai ficar?", disse o traficante.
Para o padre, ficou claro nessa frase o motivo da disputa. ""O traficante fazia ali o tráfico de elite. As pessoas de bairros ricos não iriam querer entrar ali", disse Paulo à Folha.
Antes de deixar a casa do traficante, Paulo atendeu a um pedido dele: abençoou ele e seu filho recém-nascido. Ouviu ainda que não deveria procurar a polícia.
Duas semanas depois, a casa para moradores de rua estava desativada. O rapaz agredido passou por três cirurgias, mas seu problema visual se agravou.
""Fiquei com medo [de avisar a polícia", confesso. Ele me ameaçou. Tinha muitas informações sobre mim. Só não me falou o número do meu sapato", disse.
Hoje, a casa funciona em outro bairro, distante dali, na região de outro traficante, mais ""tolerante", como descreve o padre.
(AS)



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