São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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VIOLÊNCIA

Sobreviventes de conflito no morro dos Macacos (zona norte do Rio) relatam casos de estupro e de assassinatos sumários

Com medo, morador foge de morro invadido

DA SUCURSAL DO RIO

Primeiro elas ouviram os tiros -nada demais, rotina, acreditaram. Depois vieram os gritos e a correria. As portas de suas casas foram arrombadas, e grupos de homens armados passaram a revirar tudo em busca de drogas e dos "vagabundos".
Era a invasão do morro dos Macacos, em Vila Isabel (zona norte), realizada por traficantes do morro São João, na semana passada.
"Na casa vizinha, eles estupraram uma moça. Na outra, mataram outra moça. Entraram na casa de um entregador de pizza e mandaram que ele saísse ou a família inteira ia morrer. Ele saiu para salvar os outros. Morreu", conta a moradora A., 18.
A família de A. ainda não voltou para o morro, com medo. Quando a casa deles foi invadida, os traficantes queriam saber se o irmão dela, de 19 anos, era da facção rival. Apesar da resposta negativa, estavam decidindo, na rua, se iam ou não matar o rapaz.
"Enquanto eles resolviam, meu irmão fugiu. Na outra noite, eles voltaram e disseram para todo mundo ouvir que, se a gente voltasse para lá, eles iam nos matar", conta a jovem.
E., 16, não chegou a ver os invasores. De madrugada, quando ouviu os gritos, fugiu de casa. Passou as quatro horas seguintes escondida dentro de uma vala que corta o morro, ouvindo os gritos de amigos e vizinhos.
A família dela ainda não voltou para o morro. Está abrigada na casa de parentes. "Hoje a polícia está lá. Mas, quando a polícia sair, os traficantes vão voltar e vão arrasar tudo", diz a estudante.
A família de L., 20, também teve a casa invadida, mas, apesar do medo, já voltou ao morro. Sem parentes na capital, ela, os pais e os irmãos chegaram a passar uma noite na casa de amigos no interior fluminense. Preocupados com a casa, voltaram.
Não conseguem vender o imóvel e não têm outro lugar para ir. Aos poucos, a vida vai retomando a rotina. L. volta para casa antes das 18h, com medo do que pode ver na rua. Mas acha que o pai está certo em continuar no morro.
"Eu carreguei muito tijolo morro acima para ajudar meu pai a construir a nossa casa. Não é justo que a gente fique na rua. Mas o medo está aqui, sempre", diz.
No fim de semana passado, por causa do feriado, conta ela, o que mais se viu foi gente descendo o morro com malas, roupas, móveis, bagagens. Quem pode vai embora. Quem não tem opção se acostuma a conviver com o medo.

Justiça paralela
O tráfico criou uma justiça paralela para "punir" quem desrespeita as suas regras. As punições para quem pratica algum roubo dentro da favela, por exemplo, vão de tiro na mão a homicídio.
Em abril deste ano, o vendedor de drogas Michael Fábio Rodrigues Ferreira foi torturado e esquartejado por ter perturbado uma festa realizada por traficantes do morro do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana (zona sul).
A punição para um X-9 (informante da polícia) é a tortura seguida de morte. A suspeita de que alguém sirva de informante policial já é "investigada" com espancamento e tortura.
Em setembro do ano passado, o açougueiro Alexsandro Oliveira da Silva, 28, foi agredido e torturado por traficantes da favela Vila Vintém, em Realengo (zona oeste), depois de ter sido confundido com um informante.
O açougueiro disse que, como estava sem dinheiro para o ônibus na volta do trabalho, resolveu passar por dentro da favela para cortar caminho até sua casa.
Silva prestou queixa na delegacia -o que é raro nessas ocasiões. "Quando os traficantes dão alguma punição para o pessoal, eles não vão à delegacia. No Brasil existe pena de morte, e ela é exercida por marginais", afirmou o delegado Sérgio Falante, da 22ª Delegacia Policial.
O delegado fala de outra lei imposta pelo tráfico -a lei do silêncio. "A gente quase não consegue saber de nada pelos moradores", afirma Falante.
(FERNANDA DA ESCÓSSIA)



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