São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Para afastar quilombolas, Marinha cita risco nuclear

Ilha da Marambaia (RJ) é disputada por militares e por descendentes de escravos

Suposta ameaça de ataques de submarinos a usinas de Angra 1 e 2 é usada como argumento; procurador contesta a justificativa

SERGIO TORRES
ENVIADO ESPECIAL A MANGARATIBA (RJ)

A Marinha apresentou à Casa Civil da Presidência da República e ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) a possibilidade de ataques de submarinos a usinas nucleares de Angra 1 e 2 como argumento para não aceitar a permanência na Ilha da Marambaia (RJ) de 200 famílias remanescentes de um quilombo que existiu ali, no século 19.
Nas discussões reservadas sobre a presença dos descendentes de escravos, a Marinha listou instalações que podem vir a ser atacadas por submarinos. Integram a relação, entre outras, as usinas nucleares de Angra dos Reis, o porto de Sepetiba, a Casa da Moeda e o terminal de minérios em Ibicuí.
A Marinha se instalou na região em 1971, quando criou o Cadim (Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia). As famílias de civis ocupam a ilha desde a época da escravidão. A Marambaia era um dos principais entrepostos do tráfico negreiro no litoral brasileiro.
O local fica na extremidade esquerda da restinga da Marambaia, cuja área engloba trechos dos municípios do Rio e de Mangaratiba (a 70 km da capital). Não é uma ilha, embora assim seja oficialmente chamada.
Apesar da ocupação militar, o local é considerado uma espécie de paraíso ecológico. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), já passaram temporadas de descanso nas praias.
Toda a restinga tem acesso restrito por causa das instalações militares. Ela é dividida entre o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Os descendentes de escravos ocupam apenas o trecho controlado pela Marinha. Segundo o Incra, eles têm direito a 1,63 mil hectares.
No mês passado, o Incra publicou no "Diário Oficial da União" portaria em que reconhece que a comunidade é remanescente dos quilombolas que habitaram a região há pelo menos 150 anos. Assim, os moradores teriam direito ao título definitivo de posse da terra.
A publicação da portaria surpreendeu a Marinha, que reclamou com a Casa Civil. Por ordem direta da ministra Dilma Rousseff, o Incra teve que, no dia seguinte, publicar nova portaria, revogando a primeira.
Nas reuniões realizadas sobre o assunto, a Marinha disse que pretende, no futuro, instalar na Marambaia equipamentos capazes de detectar a passagem de submarinos no canal de navegação da baía de Sepetiba.
Segundo a Marinha, submarinos de países inimigos podem se aproximar, submersos, e atacar instalações importantes da infra-estrutura do país naquele trecho da costa.

Ministério Público
A justificativa não é aceita pelo procurador da República Daniel Sarmento. Em 2002, o Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública na Justiça para que a comunidade não seja retirada pela Marinha. Ele disse que irá novamente ao Judiciário contra a suspensão da portaria do Incra.
"A Marinha está alegando isso [segurança nacional] agora. A base existe quase que exclusivamente para a hospedagem de autoridades e militares. Essa é uma questão de direitos fundamentais. Não se pode botar interesses militares duvidosos acima disso", afirmou ele.
Para tornar a vida dos moradores mais difícil, a Marinha jamais permitiu que a comunidade tivesse acesso a luz e telefone e proibiu a reforma de casas e a pesca nos locais de concentração de cardumes.
A presidente da Associação de Remanescentes de Quilombo da Ilha da Marambaia, Vânia Guerra, 47, disse que, das 281 famílias cadastradas pelo Incra, permanecem 200. "Tudo começou quando eu era criança. A invasão das roças, a destruição de canoas, o recolhimento do que plantávamos, o deboche dos militares. A situação melhorou um pouquinho quando passamos a ter a assistência do Ministério Público."


Texto Anterior: Violência: 9 pessoas são assassinadas em menos de 4 horas na Grande SP
Próximo Texto: Militares não falam sobre a disputa na Ilha
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.