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MOACYR SCLIAR
O muro
Muro serve para isolar 10 mil favelados. Com três metros de altura média, o muro impede o acesso dos 10
mil moradores das favelas Planeta
dos Macacos, União do Paraíso, Bela
Vista e Yolanda Pires à avenida Luís
Viana Filho, que liga o centro de Salvador ao aeroporto.
Cotidiano, 5.out.2000
O sonho do alemão Hans
Dietrich era conhecer o Brasil. O trópico, as praias, o céu azul,
a pureza e a inocência da natureza... Um projeto que, por várias
razões, foi sendo adiado até que
Hans disse para a esposa: este ano
vamos viajar para lá.
Entregaram a tarefa de preparar
a viagem a um agente. Tarefa,
aliás, um tanto difícil: Hans não
dispunha de mais de uma semana. O agente explicou que as distâncias no Brasil são longas e que
talvez fosse melhor ficar em um
lugar só: no caso, Salvador.
Salvador: essa era uma palavra
mágica para Hans Dietrich. Ele tinha até um vídeo da capital baiana. Na verdade, fora esse vídeo
que o motivara para a viagem.
Concordou, pois, com entusiasmo.
A viagem foi ótima. Alojados
num excelente hotel, Hans e a esposa eram diariamente levados
por um experiente guia a vários
lugares interessantes. Foram a
museus, passearam nas praias, tomaram banho de mar, comeram
acarajé. E nesse deslumbramento
os sete dias passaram rápido: de
repente, já estavam no avião, voltando para a Alemanha.
Enquanto a aeronave decolava,
Hans lançou um último olhar pela
janelinha, em busca de uma imagem que lhe ficasse gravada na
mente como derradeira lembrança. E foi então que viu o muro.
Era um muro de concreto, muito alto e muito longo. Hans, que já
tinha viajado muito, conhecia vários aeroportos; em nenhum deles vira uma coisa assim. Intrigado, perguntou à aeromoça o que
era aquilo. Ela desconversou: não
sabia bem do que se tratava, talvez
fosse uma coisa para proteção.
Hans não disse nada. Recostou-se na poltrona, tentou dormir.
Mas a imagem do muro não lhe
saía da cabeça. Por duas razões:
em primeiro lugar porque aquilo
lhe recordava o outro Muro,
aquele de Berlim, que ele, ainda
jovem, ajudara a derrubar. Em segundo lugar por causa do mistério: o que haveria, afinal, atrás daquele impenetrável construção? A
esposa, que o conhecia bem, notou que algo o incomodava, perguntou o que era. Quando ele
contou, ela, mulher prática, pensou um instante, depois disse:
"Bem, já temos uma razão para
voltar: descobrir o que há por trás
desse muro".
Mas era exatamente isso o que
Hans temia. Muros são como a
caixa de Pandora. Uma vez que se
descobre os seus segredos, a pureza e a inocência estão perdidas para sempre.
O escritor Moacyr Scliar escreve nesta
coluna, às segundas-feiras, um texto de
ficção baseado em notícias publicadas
no jornal.
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