São Paulo, segunda-feira, 09 de outubro de 2000

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MOACYR SCLIAR
O muro

 Muro serve para isolar 10 mil favelados. Com três metros de altura média, o muro impede o acesso dos 10 mil moradores das favelas Planeta dos Macacos, União do Paraíso, Bela Vista e Yolanda Pires à avenida Luís Viana Filho, que liga o centro de Salvador ao aeroporto. Cotidiano, 5.out.2000 O sonho do alemão Hans Dietrich era conhecer o Brasil. O trópico, as praias, o céu azul, a pureza e a inocência da natureza... Um projeto que, por várias razões, foi sendo adiado até que Hans disse para a esposa: este ano vamos viajar para lá.
Entregaram a tarefa de preparar a viagem a um agente. Tarefa, aliás, um tanto difícil: Hans não dispunha de mais de uma semana. O agente explicou que as distâncias no Brasil são longas e que talvez fosse melhor ficar em um lugar só: no caso, Salvador.
Salvador: essa era uma palavra mágica para Hans Dietrich. Ele tinha até um vídeo da capital baiana. Na verdade, fora esse vídeo que o motivara para a viagem. Concordou, pois, com entusiasmo.
A viagem foi ótima. Alojados num excelente hotel, Hans e a esposa eram diariamente levados por um experiente guia a vários lugares interessantes. Foram a museus, passearam nas praias, tomaram banho de mar, comeram acarajé. E nesse deslumbramento os sete dias passaram rápido: de repente, já estavam no avião, voltando para a Alemanha.
Enquanto a aeronave decolava, Hans lançou um último olhar pela janelinha, em busca de uma imagem que lhe ficasse gravada na mente como derradeira lembrança. E foi então que viu o muro.
Era um muro de concreto, muito alto e muito longo. Hans, que já tinha viajado muito, conhecia vários aeroportos; em nenhum deles vira uma coisa assim. Intrigado, perguntou à aeromoça o que era aquilo. Ela desconversou: não sabia bem do que se tratava, talvez fosse uma coisa para proteção.
Hans não disse nada. Recostou-se na poltrona, tentou dormir. Mas a imagem do muro não lhe saía da cabeça. Por duas razões: em primeiro lugar porque aquilo lhe recordava o outro Muro, aquele de Berlim, que ele, ainda jovem, ajudara a derrubar. Em segundo lugar por causa do mistério: o que haveria, afinal, atrás daquele impenetrável construção? A esposa, que o conhecia bem, notou que algo o incomodava, perguntou o que era. Quando ele contou, ela, mulher prática, pensou um instante, depois disse: "Bem, já temos uma razão para voltar: descobrir o que há por trás desse muro".
Mas era exatamente isso o que Hans temia. Muros são como a caixa de Pandora. Uma vez que se descobre os seus segredos, a pureza e a inocência estão perdidas para sempre.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.




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