São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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COMENTÁRIO

Filhos devem se transformar em seus próprios pais

ROSELY SAYÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Mal-estar. Foi isso, no mínimo, o que muita gente sentiu ao acompanhar o desenrolar das notícias sobre o assassinato de um casal na cidade de São Paulo, principalmente quando foi anunciado que os acusados do crime, que teriam confessado sua participação, são a filha de 19 anos do casal, seu namorado e um irmão dele. Foi dito que os pais da garota não aprovariam o namoro dela e que esse teria sido o motivo para o crime -um crime por amor!?-, tanto quanto para muitos conflitos entre a garota e seus pais.
Isso transforma um grande número de pais -e de filhos também- em espectadores ativos dessa história, por isso tanto envolvimento, estranhamento, perplexidade, espanto. Afinal, quantos pais não desaprovam e não lamentam não apenas namorados e namoradas, mas tantas outras escolhas que os filhos fazem na vida, como por exemplo a profissão futura, um estilo de roupa e/ou de comportamento etc.?
Mas, e os filhos? Precisam da aprovação dos pais para tomar seu rumo na vida? Não podem -ou não conseguem?- bancar suas escolhas, mesmo que elas sejam diferentes das que os pais queriam? Isso nos faz pensar no tipo de educação -que nada mais é do que ensinar a viver- que os pais têm dado aos filhos.
A finalidade da educação dada aos filhos é o acesso à autonomia, ou seja, à independência para viver por conta própria. Mas, de algum modo, o relacionamento que muitos pais têm com os filhos tem apontado para o caminho oposto: para a dependência, para a falta de liberdade dos filhos para abrir seu caminho, para gozar sua vida sem a aprovação, a autorização ou o consentimento deles.
Um dos sinais desse fato é a conotação que ganhou a palavra diálogo: entendimento, aceitação, submissão. Há diálogo entre pais e filhos quando uma das partes aceita o ponto de vista do outro, é o que eles acham. Parece que pais não querem conflitos com os filhos.
Mas o fato é que o conflito, ou seja, o desentendimento, pode ajudar no amadurecimento, no crescimento, no desenvolvimento, enfim. E os pais precisam suportar e viver esses conflitos com os filhos, desde quando eles são pequenos, sem que seja preciso se submeter às idéias ou demandas deles.
Essa é uma maneira importante de o filho perceber que a tutela dos pais sobre ele é sempre temporária: à medida que se torna capaz de assumir, por conta e risco, sua vida, as decisões passam a ser dele, tanto quanto as consequências que elas podem trazer.
Assim, se espera que um filho chegue à juventude, ao fim da adolescência, sendo capaz de bancar sua vida, mesmo com a opinião contrária dos pais. E sem a pressão de que, porque foi uma escolha própria e diferente da que os pais queriam, precisa dar certo. Não precisa, mesmo porque nem sempre dá. Mas o mesmo pode ocorrer se a escolha fosse a que os pais queriam.
O que surpreende no caso em pauta é justamente o fato de que a filha, supostamente envolvida no crime, parece não ter encontrado uma maneira de bancar sua escolha, de viver à revelia da expectativa dos pais. E o que os filhos precisam para viver é justamente prescindir dos pais: devem eles mesmos se transformar em seus próprios pais.
Temos contribuído, no relacionamento com os filhos, para que eles tenham acesso a essa conquista? Ou será que estamos é promovendo um atamento sedutor? Essa é nossa questão.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Sexo é Sexo" (ed. Companhia das Letras); e-mail: roselys@uol.com.br

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