São Paulo, terça-feira, 10 de janeiro de 2006

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RUBEM ALVES

A esperança em vidros coloridos

Sempre olhei com desconfiança a teoria estética da psicanálise que afirma que o sentido de uma obra de arte não se encontra nela mesma, mas nos subterrâneos obscuros da alma de onde ela brota. Toda obra de arte é uma dissimulação. A beleza é um gemido travestido. O que levou Bachelard a brincar: "O psicanalista é uma pessoa que, quando lhe mostramos uma rosa, pergunta: "Mas e o esterco, onde está?'" Mas esse livro de vitrais que estou folheando, a mais linda coleção de vitrais que jamais vi reunidos, obras de um único homem, está me produzindo pensamentos diferentes. Estou pensando que há obras de arte que só ganham a sua verdadeira dimensão quando as vemos através da transparência do rosto do artista. É o caso da "Nona Sinfonia". Não é preciso saber o nome de Beethoven para sentir a sua beleza. Acontece, entretanto, que Beethoven estava completamente surdo quando a compôs. Ele não podia ouvir sua própria música. Quando a ouço, pensando em Beethoven açoitado pelo destino, a "Nona Sinfonia" ganha a sua dimensão trágica. Ela se torna um testemunho do triunfo do espírito sobre a tragédia. Como disse Rilke, a beleza nos permite contemplar a tragédia sem sermos destruídos por ela.
Senti algo parecido ao ver os vitrais em cada página. Maravilhosos, em si mesmos. Mas, ao pensar no artista, eles se tornam um testemunho. Arystarch Kaszkurewicz, vitralista, um polonês pacifista. A guerra lhe arrancara as duas mãos e um olho. Ravel compôs um concerto de piano para a mão esquerda, dedicado a um pianista amigo que perdera a mão direita na guerra. Mas um vitralista, sem as duas mãos? Ele pensou que no Brasil poderia refazer a sua vida. Mas havia uma lei que proibia a entrada de deficientes físicos no país. O país precisava de homens saudáveis, bons para o trabalho. Que trabalho se pode esperar de um homem sem as mãos? Foi uma carta do National Catholic Wellfare Conference (1951) que abriu o caminho. Em 1952, por decreto do presidente Vargas, ele desembarcou em Santos com a sua família.
A princípio trabalhou como empregado de uma casa especializada em vitrais em São Paulo. Suas obras ficaram sem assinatura. Mas ele nelas deixava secretamente traços e símbolos que só os seus amigos entenderiam. O vitralista Simeão Sugai, 74, trabalhou com ele por cerca de dez anos. Comentou que tudo ele fazia sozinho, do planejamento à execução. Só uma coisa lhe pedia: que lhe arregaçasse as mangas... Era um solitário. Fugia dos jornalistas que o procuravam. Quando era inquirido sobre o significado de seus vitrais ele respondia: "Para quê? As crianças entendem sem fazer perguntas...".
Peregrinou por todo o país espalhando a beleza. Fez cerca de 20 vitrais que contam a colonização do Brasil. Também os vitrais do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo são de sua autoria. O padre Baldan, 84, da Paróquia de N.S. Auxiliadora, em Campinas, relata: "Ele veio me pedir para trabalhar na paróquia. E já possuía um projeto em mente. Eu sorri desconfiado. Como é que um homem sem mãos poderia realizar tal trabalho? Vendo a desconfiança no meu sorriso ele espalhou sobre a mesa desenhos e fotos da sua obra. "Aí está o meu trabalho. Olhe para eles. Não olhe para mim.'" Fez no altar dessa paróquia um mosaico de nove metros de altura com minúsculas pastilhas de vidro: a Virgem assentada num trono com o menino Jesus ao colo. Todos temos o direito de nos assentar no colo da Virgem...
Do altar dessa igreja, olhando-se na direção da porta principal, Arystarch colocou no vitral um arco-íris que cobre o mundo. Beethoven cantou a alegria. Arystarch Kaszkurewicz pintou a esperança.


Todas as informações desse artigo foram retiradas do livro de Raquel Bueno Arystarch: "O Arquiteto dos Deuses" (Eletrobrás. Campinas, SP: Ed. do autor, 2004). As fotos, de Gustavo Olmos, são maravilhosas.

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