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RUBEM ALVES
A esperança em vidros coloridos
Sempre olhei com desconfiança a teoria estética da psicanálise que afirma que o sentido
de uma obra de arte não se encontra nela mesma, mas nos subterrâneos obscuros da alma de
onde ela brota. Toda obra de arte
é uma dissimulação. A beleza é
um gemido travestido. O que levou Bachelard a brincar: "O psicanalista é uma pessoa que,
quando lhe mostramos uma rosa,
pergunta: "Mas e o esterco, onde
está?'" Mas esse livro de vitrais
que estou folheando, a mais linda
coleção de vitrais que jamais vi
reunidos, obras de um único homem, está me produzindo pensamentos diferentes. Estou pensando que há obras de arte que só ganham a sua verdadeira dimensão
quando as vemos através da
transparência do rosto do artista.
É o caso da "Nona Sinfonia". Não
é preciso saber o nome de Beethoven para sentir a sua beleza.
Acontece, entretanto, que Beethoven estava completamente surdo
quando a compôs. Ele não podia
ouvir sua própria música. Quando a ouço, pensando em Beethoven açoitado pelo destino, a "Nona Sinfonia" ganha a sua dimensão trágica. Ela se torna um testemunho do triunfo do espírito sobre a tragédia. Como disse Rilke,
a beleza nos permite contemplar
a tragédia sem sermos destruídos
por ela.
Senti algo parecido ao ver os vitrais em cada página. Maravilhosos, em si mesmos. Mas, ao pensar
no artista, eles se tornam um testemunho. Arystarch Kaszkurewicz, vitralista, um polonês pacifista. A guerra lhe arrancara as
duas mãos e um olho. Ravel compôs um concerto de piano para a
mão esquerda, dedicado a um
pianista amigo que perdera a
mão direita na guerra. Mas um
vitralista, sem as duas mãos? Ele
pensou que no Brasil poderia refazer a sua vida. Mas havia uma
lei que proibia a entrada de deficientes físicos no país. O país precisava de homens saudáveis, bons
para o trabalho. Que trabalho se
pode esperar de um homem sem
as mãos? Foi uma carta do National Catholic Wellfare Conference
(1951) que abriu o caminho. Em
1952, por decreto do presidente
Vargas, ele desembarcou em Santos com a sua família.
A princípio trabalhou como
empregado de uma casa especializada em vitrais em São Paulo.
Suas obras ficaram sem assinatura. Mas ele nelas deixava secretamente traços e símbolos que só os
seus amigos entenderiam. O vitralista Simeão Sugai, 74, trabalhou com ele por cerca de dez
anos. Comentou que tudo ele fazia sozinho, do planejamento à
execução. Só uma coisa lhe pedia:
que lhe arregaçasse as mangas...
Era um solitário. Fugia dos jornalistas que o procuravam. Quando
era inquirido sobre o significado
de seus vitrais ele respondia: "Para quê? As crianças entendem
sem fazer perguntas...".
Peregrinou por todo o país espalhando a beleza. Fez cerca de 20
vitrais que contam a colonização
do Brasil. Também os vitrais do
Hospital Beneficência Portuguesa
de São Paulo são de sua autoria.
O padre Baldan, 84, da Paróquia
de N.S. Auxiliadora, em Campinas, relata: "Ele veio me pedir para trabalhar na paróquia. E já
possuía um projeto em mente. Eu
sorri desconfiado. Como é que um
homem sem mãos poderia realizar tal trabalho? Vendo a desconfiança no meu sorriso ele espalhou sobre a mesa desenhos e fotos da sua obra. "Aí está o meu
trabalho. Olhe para eles. Não olhe
para mim.'" Fez no altar dessa
paróquia um mosaico de nove
metros de altura com minúsculas
pastilhas de vidro: a Virgem assentada num trono com o menino
Jesus ao colo. Todos temos o direito de nos assentar no colo da Virgem...
Do altar dessa igreja, olhando-se na direção da porta principal,
Arystarch colocou no vitral um
arco-íris que cobre o mundo. Beethoven cantou a alegria. Arystarch Kaszkurewicz pintou a esperança.
Todas as informações desse artigo foram
retiradas do livro de Raquel Bueno Arystarch: "O Arquiteto dos Deuses" (Eletrobrás. Campinas, SP: Ed. do autor, 2004).
As fotos, de Gustavo Olmos, são maravilhosas.
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