São Paulo, domingo, 10 de junho de 2007

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Dono de rádio pirata diz não ser criminoso

Proprietários de emissoras ilegais se defendem ao dizer que trabalho que desenvolvem é importante para a periferia

Revolucionárias ou instauradoras do caos? Leia aqui o que a reportagem viu ao visitar rádios piratas que funcionam em São Paulo

JOÃO WAINER
DA REVISTA DA FOLHA

Na tarde da última quarta-feira, o ministro Hélio Costa, das Comunicações, apareceu numa TV com chiado em uma padaria na periferia de São Paulo. Ele anunciava no telejornal o fechamento de dezenas de rádios piratas que estariam interferindo em freqüências restritas dos aeroportos. Dizia que havia solicitado ao Ministério Público o "interdito proibitório" para punir criminalmente rádios reincidentes, enquanto as imagens mostravam policiais lacrando as emissoras.
No balcão, ao meu lado, Daniel*, 48, dono de uma rádio comunitária operando ilegalmente em seu bairro, esbraveja: "Faz 12 anos que minha rádio presta serviços à comunidade, ajuda a encontrar desaparecidos, dá voz para o meu povo dizer o que pensa e agora eu tenho que ouvir um engravatado lá de Brasília vir dizer que eu sou o criminoso. É o fim..."
Os últimos dias foram de tensão para os donos de rádios clandestinas, livres, ilegais ou piratas, como são chamadas. E também para este repórter.

Desconfiança
Durante três dias tentei encontrar sem sucesso uma rádio clandestina em funcionamento. Mas a desconfiança e o medo da prisão fez com que a maioria delas saísse do ar provisoriamente semana passada.
Na padaria, Daniel me explica que não poderei conhecer sua rádio, pois na madrugada anterior recebera a informação de que naquela quarta haveria uma grande blitz da polícia, e que, por isso, todos os seus equipamentos tinham sido retirados e escondidos. A notícia na TV comprovou que a informação era quente.
A rádio de Daniel, diz ele, nasceu de um movimento popular de luta por moradia. "Usávamos para convocar o povo para ocupações, reuniões e assembléias. Também organizávamos mutirões de limpeza, como a famosa operação cata-bagulho, que até hoje acontece. Com o tempo, a rádio foi ganhando asas e sua programação se tornou independente do movimento popular e da igreja."
De fato, as emissora evangélicas respondem por boa parcela das piratas em atividade. E, assim como na esfera "oficial", algumas clandestinas se utilizam de expedientes atribuídos a emissoras comerciais, como a cobrança de jabá. Há quem diga, nesse meio, que muitas piratas lucram um bom dinheiro com festas, anúncios de comerciantes locais e jabás.

Distância
Tentando me ajudar, Daniel telefona para outras rádios da região, mas todos querem distância de jornalistas. Minha tarefa parece impossível.
Continuo. No mesmo dia, do outro lado da cidade, José*, um alagoano de 54 anos me recebe em sua casa. Depois de fracassar como dono de supermercado e vendedor de carros, conta que resolveu pegar o dinheiro que lhe sobrou e investir em uma pequena estação.
"Tínhamos 11 locutores, tocávamos músicas dos cantores do bairro e abríamos o microfone para quem quisesse falar. Éramos ouvidos num raio de cinco quilômetros e todo boteco da região sintonizava a gente o tempo todo. De dois anos pra cá, a polícia intensificou a repressão, e minha vida virou um inferno." Ele diz ter entrado em depressão e fechado o estúdio.

Depressão
A depressão passou e a rádio voltou ao ar no começo deste ano, mas, para burlar a fiscalização, José grava o programa como se fosse ao vivo em um estúdio num quartinho de sua casa e aluga uma antena para retransmiti-lo bem longe dali.
Sigo para a zona sul, onde encontro Donato Alves, 40, olhar triste. Sua rádio, a Estrada FM, foi fechada pela polícia em junho de 2006. Ele entrou com o pedido de homologação da rádio em 2002, mas até hoje o processo está parado.
Na freqüência do dial clandestino, predomina a crença de que aeroportos incomunicáveis e transmissões piratas não têm relação -natural, cada um defende o que lhe convém.
Mas há outros profissionais que também suspeitam da ameaça das piratas. "Com o caos aéreo, será que não estão tentando achar alguém para botar a culpa?", alfineta Manuel Martins, 77, supervisor técnico de transmissões aposentado que trabalhou durante 45 anos em rádios e TVs.

Berlinda
O fato é que as rádios ilegais estão na berlinda e seus piratas, acuados. "Tinha uma senhora aqui do bairro que sintonizou nossa rádio e arrancou o botão do dial porque ela só gostava de nos ouvir. Depois de um trabalho desses ser chamado de pirata é humilhação", diz Donato.
Mas entre os clandestinos nem todos pensam igual. O ex-DJ Humberto*, 31, é dono de uma das rádios ilegais mais conhecidas na periferia da zona sul. Seu discurso é incisivo. "Sou pirata mesmo, não tem essa de comunitária, livre ou clandestina. Não tem licença, então é pirata. Sou um revolucionário e uso minha rádio pra passar minha mensagem."
A música negra é a base da programação da emissora, que é sustentada por pequenos anunciantes do bairro. "Não admitimos rap que faz apologia ao crime, música ruim e muito menos jabá." Humberto diz não ter medo das blitze policiais. "Meus transmissores estão escondidos no mato. Se eles acharem, vão prender quem? Só se algemarem os macacos." * Nomes fictícios


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