São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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GILBERTO DIMENSTEIN

Lições da noite paulistana

É impossível conhecer São Paulo sem fazer uma ronda noturna, pouco antes do início da madrugada, por algumas das ruas que recebem um tipo especial de pedestre, que, em geral, carrega um livro.
A maioria desses pedestres vem da classe média baixa e estudou em escolas públicas. São jovens que trabalham de dia como contínuos, secretárias ou empregadas domésticas. Alheios à boêmia -afinal, precisam acordar cedo-, estão saindo, cansados, da faculdade privada, à espera de um ônibus que vai levá-los para bairros pobres ou até para o extremo da periferia.
Essas cenas noturnas, tão distantes dos boêmios de "Ronda", canção de Paulo Vanzolini, ou da discreta elegância das meninas de "Sampa", de Caetano Veloso (canção inspirada, como se sabe, em "Ronda"), explicam em parte o favoritismo de José Serra, reafirmado hoje em pesquisa do instituto Datafolha.
A chance de uma virada de Marta Suplicy está atrelada, em boa medida, à sua conexão com o que simbolizam esses jovens cansados, livro debaixo do braço, à espera do ônibus.
Jovens da periferia, sonolentos nos pontos de ônibus próximos da faculdade, são a melhor síntese paulistana. É a chamada classe C, que se encara como classe média, ansiosa por mais escolaridade.
Basta analisar uns poucos números. Para entender por que explodiu o número de matrículas nas faculdades, deve-se levar em conta uma estatística: em 1991, cerca de 28% dos jovens entre 15 e 17 anos de idade estavam no ensino médio; hoje são 60%. O crescimento ocorreu quase exclusivamente nas escolas públicas.
Existem indicadores ainda mais relevantes quando se analisa a mão-de-obra da cidade. Cerca de 50% dos trabalhadores, mais precisamente 47%, têm diploma de ensino médio ou superior. Não estão computados aí os que cursam o ensino médio, mas apenas os que já possuem esse nível completo de escolaridade.
Para uma população de 10,4 milhões de pessoas, há registrados 5,3 milhões de automóveis, 8,2 milhões de celulares e 5,3 milhões de linhas telefônicas fixas.
O mapa que saiu da eleição mostrou que, ao exibir de forma tão intensa sua identificação com os mais pobres (e temos de reconhecer que a gestão de Marta tem o que mostrar em políticas de inclusão social), o PT se distanciou do imaginário da classe média -esse o segmento mais numeroso da cidade.
Existem muitas explicações para a diferença de votos detectada hoje pela pesquisa: por exemplo, as famosas taxas, a imagem de antipatia da prefeita, as obras que se avolumaram no ano eleitoral, o prestígio do governador Geraldo Alckmin, a desconfiança dos abastados em relação ao PT e a inquietude da população mais pobre com a saúde, combinada com o fato de o candidato do PSDB ter sido ministro justamente nessa área, o que lhe rendeu prestígio.
As rondas noturnas ensinam que não se deve menosprezar um aspecto no jogo de imagens usado pelos marqueteiros.
Com seus programas de renda mínima, CEUs, Passa Rápido, bilhete único, ruas de lazer na periferia, Marta reúne uma galeria de ações que, embora possam ter eficiência discutível e fontes de financiamento polêmicas, reduzem a exclusão social. Mas, na batalha de imagens, deparam-se a moça vinda de uma família rica, criada nos Jardins, e o filho de imigrantes da zona leste.
Embora em intensidade diferente, Serra, em 2004, reproduz o roteiro de Lula em 2002. Com sua biografia, Lula agarrou o imaginário dos pobres, exibindo sua história -a do operário, filho de migrantes. Serra se beneficia eleitoralmente de sua trajetória de filho de feirantes, que saiu da escola pública, fez faculdade e se tornou ministro.
A batalha para o PT é, como mostra a pesquisa hoje, difícil, mas não está perdida. Será impossível, porém, se a prefeita não souber, nessas menos de três semanas que lhe restam, mostrar como ajudar a periferia é bom para o centro e se não souber fazer a ponte entre quem, no extremo da periferia, se beneficia de um programa de renda mínima e os jovens estudantes de faculdade, que, em busca de um sonho, povoam as noites paulistanas. Estes são a melhor síntese dos anseios da cidade -por enquanto, como mostra o Datafolha, mais bem encarnados por Serra.
PS - Por falar em conexões, fico tentando imaginar todos os argumentos possíveis para saber como o PT vai justificar, em São Paulo, a aliança com Paulo Maluf, que, diga-se, foi adulado pelo PSDB. Até pouco tempo atrás, Maluf dizia que todos aqueles documentos e denúncias sobre suas contas bancárias no exterior tinham conexões com petistas. Ao mesmo tempo, a prefeitura designou advogados para retomar dinheiro que, supostamente, teria sido desviado para contas bancárias na Suíça pelo ex-prefeito.
Ou se passou a achar que todos aqueles papéis eram uma fraude (e aí Maluf merece um pedido de desculpas do PT) ou então os papéis são verdadeiros e o eleitor petista é que merece o pedido de desculpas.

E-mail - gdimen@uol.com.br

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