São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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ARTIGO

E se o dr. Atkins tivesse se limitado à cardiologia?

CLARISSA DICKSON WRIGHT

E se Robert Atkins não tivesse escrito seu famoso livro sobre dieta? A resposta óbvia é que sua viúva não estaria tão bem de vida e ele talvez estivesse em estado melhor de saúde quando morreu, de uma queda acidental, em 2003. Talvez não tivesse passado por um ataque cardíaco no ano anterior, causado, pode-se suspeitar, pelos desgastes da vida de celebridade aliados a um regime dietético composto basicamente por alimentos gordurosos.
O mais importante é que, sem a dieta Atkins, muita gente que fracassou e manteve seu excesso de peso não teria danificado os rins.
Confesso minha afeição por um homem que transformou fanáticos dedicados a alface, iogurte e leite desnatado em devoradores de ovos com bacon e costeletas de porco gordurosas. Um caso clássico de "roupa nova de imperador", se poderia afirmar. Mas essa descrição não se aplica a todo o fenômeno da dieta?
Dietas avançam paralelamente à civilização. Quando uma nação dispõe de excedentes de comida abundantes e de tempo amplo para o lazer, seus cidadãos começam a se preocupar com a imagem. As damas da Roma antiga, dizem-nos, comiam aranhas vivas para estimular o aparelho digestivo e perder peso.
Lembro-me, quando era moça, de ouvir uma história sobre uma visita da grande diva Maria Callas a um médico de Paris que receitava ovos de tênia a quem desejasse perder peso. Callas perdeu peso, perdeu parte da voz e ainda assim fracassou em sua tentativa de se casar com Aristoteles Onassis, que estava mais interessado em um tipo diferente de imagem.
Imagem é um mito perigoso. Você não consegue um companheiro para toda a vida (não, ao menos, um que valha a pena) se sujeitando à fome, não enriquece com isso a não ser que seja médico de dietas ou supermodelo e certamente não se ama mais do que antes.
O que você conseguirá, quase certamente, é osteoporose e problemas intestinais e, como os antigos gregos ou a Alemanha de Hitler, um fanatismo bastante desagradável.
"Banting", um nome que se dava à prática de dietas no passado (em memória de William Banting, especialista em dietas e papa-defuntos que era o dr. Atkins britânico do século 19), é uma atividade especialmente popular em momentos de prosperidade e lazer. Mas a maior parte dos velhos retratos mostra a classe alta, os grandes comerciantes, como pessoas bem alimentadas em um mundo no qual os pobres eram subnutridos e magérrimos.
Excesso de peso costumava ser um símbolo de status, e continua a sê-lo nos países onde os pobres são subnutridos.
No mundo "civilizado" moderno, onde os pobres sobrevivem sob uma dieta de gorduras saturadas, ser esbelto é que é o símbolo de status.

Cinismo
Dietas representam muito dinheiro, como descobriu o dr. Atkins. Mas, embora ele tivesse algumas qualificações para sustentar suas teorias, há quem seja muito mais cínico, como a atriz de Hollywood cujo programa de dietas e exercícios prometia um corpo como o dela, mesmo que o dela tenha sido criado por cirurgia plástica. Outro autor cínico de livros de dieta simplesmente empresta seu nome a obras escritas por uma mulher cujo porte me faz parecer Twiggy.
O legado das magérrimas modelos "heroin chic" e dos gurus de dieta tratados como celebridade que temos hoje é a anorexia, uma doença que mata mais que as drogas de emagrecimento.
Quando eu estava em tratamento, meu grupo de terapia incluía alcoólatras, drogados e pessoas com distúrbio de alimentação. Dezesseis anos mais tarde, todos os que sofriam de anorexia e bulimia no grupo, exceto um, estão mortos. A doença mata.
Fome auto-induzida não é novidade. A mãe de Bonnie Prince Charlie, um aspirante ao trono inglês no século 18, era anoréxica, e há outros casos registrados na história, mas não com a frequência que vemos hoje. Esse é o lado sombrio e destrutivo das dietas. Lembro-me de uma moça, que já morreu, pesando menos de 42 quilos, naquela altura, e me dizendo: "Você não é gorda, eu sou".
Hoje, as crianças percebem a obsessão dos seus pais e amigos com a manutenção do peso; a mídia as força a engolir essa bobagem, e elas, como costumam fazer as crianças, formam uma percepção fatal.
De certas maneiras, talvez, o dr. Atkins pode ter salvado muitas vidas ou seus problemas surgiram no momento certo. A popularidade de "Two Fat Ladies" (Duas Senhoras Gordas), nosso programa de culinária na televisão, e de nossos livros de receitas pode apontar para uma era em que as pessoas se preocupem mais com o seu bem-estar interno do que com sua imagem externa.
Enquanto isso, o "esclarecido" governo britânico que vendeu os parques infantis em que nossas crianças brincavam e desencorajou os esportes competitivos, quer nos colocar em campos de concentração para gordos.
Instar as pessoas a comer salada e sustentar, ao mesmo tempo, que uma batata não é um legume, por medo de que ela cause ganho de peso, lembra-me de um sujeito que queria proibir a caça à raposa, era vegetariano e acreditava em selecionar a perfeita raça dominante.
Fico por aqui, e parto para o meu café da manhã perfeito, com presunto de Natal e ovos fritos, nada disso comprado em supermercado. Se o dr. Atkins tivesse persistido na cardiologia, minha vida talvez não mudasse, mas é possível que, em última análise, o espelho que ele ofereceu a todos nos faça mudar um pouco de atitude, por demonstrar o quanto podemos ser tolos.
Feliz Ano Novo. Não incluam dieta em suas resoluções de Ano Novo e aprendam a se amar como são, mesmo gordos.


A autora, ex-advogada, é dirigente da Universidade de Aberdeen e, com Jennifer Patterson, que já morreu, era responsável por "Two Fat Ladies", uma série de programas de culinária na televisão e uma coleção de livros de receitas

Artigo publicado originalmente no jornal "Financial Times"

Tradução de Paulo Migliaccio


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